domingo, 7 de dezembro de 2014

A Nossa Dona Filipa

É uma mãe de pele avermelhada, alta, ancuda, sempre com roupas de trabalho de casa, as mãos sempre molhadas a enrugar as costas do vestido pelo ato de se secarem. O rosto e os braços grossos parecem esculpidos em pedra de tão rígidos. Acorda os galos para que cantem. Organiza a casa, cuida de seus animais, prepara as refeições e os bolos para a venda, conserta o que há para consertar sem nunca reclamar, sem jamais expressar coisa alguma. Quando às alturas da tarde, de enxada em punho a duelar com a dureza do solo cicatrizado, o sol lhe bate forte no esqueleto, não mais que um rearranjar da coluna e a reafirmação do seu dever lhe interrompem o movimento mecânico.

Não precisa de homem, quem o precisa. Constrói seu próprio respeito. A volumosa presença e o semblante da mulher ocupada intimidam os desvios de concepção que o pensamento pode confeccionar. Para quem a conhece, é totem, é monumento de retidão. Se está à beira da cerca num dos seus arranjos da rotina, é certo que os transeuntes a cumprimentem, mesmo lhe chamem a atenção, caso esteja desatenta, para oferecerem os seus bomdias e coisas do tipo, como se sentissem a metafísica obrigação de o fazerem ante tão inviolável conduta. A estes cumprimentos reage quase sempre com um gesto de cabeça, seco, e volta aos seus afazeres que lhe garantem tamanha simpatia.

Tem quatro filhos e duas meninas. Os pais quem é que sabe? Quem é que precisa? Ela manda melhor sozinha. Não é dona de humor fácil, nem sabe se o tem, mas ainda que a pele e o tato sejam de palha de aço, os filhos estão sempre a beijá-la e abraçá-la, correndo a atender-lhe os poucos caprichos. É mãe protetora e rígida, que quer de suas crianças nada mais que obediência. Cozinha, banha, ensina, lava, veste, sem atraso. São limpos, alegres, cuidadosos e silenciosos os seus bebês debaixo do peso de sua asa. Não há testemunha que diga ter visto correr aqueles filhos de Dona Filipa pela sala, atrapalhando, quando ela se ocupa da sua novela da tarde, o pequeno regalo de sua conduta, tamanha a eficiência desta mãe em fazê-los bem-comportados. É mesmo conhecido e comentado por muitos o comportamento adulto, sisudo em quantia, dos seus filhos.

-Dona Filipa é mãe que sabe educar - diz um.
-Daí sai um doutor, pelo menos.
-Que mágica ela tem pra fazer dessas criaturas a educação em pessoa? - pergunta outro.

O que os olhos admirados não podem ver é este ritual da manhã, quando o sol ainda enrola uns minutos no seu leito, momento em que a mãe rodeia sua casinha branca, passa pelo galinheiro, cruza com os leitões, ultrapassa o fundo do seu terreno e chega lá onde vai começar a queda do morro. Ali, diante de umas quatros cruzinhas brancas, estacadas na extremidade de uns quatro morrotes de terra, ela se ajoelha e faz uma pequena oração. Na mão, uma vasilha que fica para trás, repleta de bolinhos de chuva. Ela faz o sinal da cruz, filha obediente que é ao pai supremo, e volta para a casinha, para a rotina de mulher respeitável. Ela atravessa uma cerca baixa de madeira branca que separa este sítio do terreno de sua casa. Sobre a cerca está fixada uma placa rabiscada com letras grosseiras. O que está escrito nela, e que os olhos admirados não leem: "EM MEMÓRIA DOS QUE NÃO ME OBEDECERAM".     

domingo, 30 de novembro de 2014

O Dia de Adelaide




É manhã, uma manhã cuja existência fugaz já soma duas horas. O sol de cor esverdeada observa a tudo, lançando sempre ondas de raios multicoloridos pela extensão do espaço, espetáculo não feito menos maravilhoso pela intromissão freqüente das nuvens cor de algodão-doce.
         Adelaide acorda com o dia. Ela se levanta tão logo se retira o cobertor da noite. É a hora em que a névoa com cheiro de chocolate rasteja de volta a sua toca. Cantarolante, ela se banha no córrego atrás de sua casinha, veste as flores do seu vestido e penteia o cabelo frente ao espelho. Na cozinha, há uma cesta de frutas que ela sabe não serem para a sua alimentação, recolhe-as com cesta e tudo e vai cuidar de seu cultivo. Abandona as frutas num cantinho protegido e dedica um tempo para sua pequena horta. A terra escura é fofa e lhe cobre as mãos com uma frieza gostosa. De vez em quando, interrompe-se para tirar o suor da testa ou ver as irradiações multicoloridas do sol.
         Dali, Adelaide segue para o seu pomar, guiando-se por esta picada feita de folhas amareladas, um tapete dourado cheio de majestade. É neste momento que lhe aparece seu fiel amigo, Pulgão, este cachorro com asas e pelo azul. Adelaide abraça-o, ele sacudindo o rabo e lambendo:
         -Bom dia, meu Pulgão roliço!
         -Sim, minha flor, o dia é bom, mas de roliço eu só tenho a inteligência.
         Adelaide abre o sorriso e sacode as orelhas de Pulgão. Ao mesmo tempo, o vento vem recolhendo uma dose de folhas amarelas, que vai levando para onde for, tornando mais encantadora sua passagem. A menina e o cachorro, então, seguem adiante. Chegam ao pomar. Debaixo das muitas árvores, enquanto Pulgão corre atrás das borboletas, Adelaide arranja as frutas da cesta sobre a membrana de folhas caídas e espera. Aparece o primeiro passarinho, acompanhado de outro na distância duns segundos. Logo, os galhos estão rodeados deles, todos prontos para a refeição. Porém, quando insinuam um ataque, Adelaide os impede com gesto autoritário.
         -Primeiro a minha canção.
         Um dos passarinhos se empertiga e diz.
         -Muito bem, meus senhores, façamos como pede nossa colega.
         O que se segue é a mais admirável execução vocal que jamais se ouviu. Pássaros tenores provocando estremecimentos até mesmo nas copas das árvores. Magnífico! Adelaide cansa as palmas das mãos, chocando-as com velocidade, extasiada por dia após dia comprovar a realidade daquela façanha. E não tendo mais o que exigir dos senhores pássaros, permite que ataquem o montículo de frutas. Frutas estas nada comuns. Ao primeiro investir dos bicos pode-se notar fluir do interior das maçãs, peras e goiabas uma substância líquida que não era outra coisa senão chocolate derretido. Maravilhas que só crescem no quintal de Adelaide. Deliciada ainda mais, a menina deixa que se revirem e se lambuzem, e vai seguindo à procura de pulgão, quando se lembra de ter esquecido na horta o rastelo para limpar o pomar.
         -Que besta que sou.
         Aproveita para devolver a cesta e retorna a sua casinha. Naquele instante, as melodias começam a ecoar por toda parte. Parecem vir da boca de várias ninfas, ou qualquer criatura de alma suave e cheia de carinho. Seus tons densos vem se esgueirando e sutilmente levando o espírito pela mão para planar não se sabe onde. Uma fantasia extasiante que há de fluir por todo o dia. Não demora Adelaide está cruzando as cercas de sua horta, deixa ali mesmo a cesta de frutas, pega o rastelo e se vai saindo. Acontece de surpreender a carroça do velho Siel passando em frente do seu quintal neste momento, por sobre a estradinha que vai sumir lá no meio das colinas de limão. É bem limpinha, apesar dos retalhos de grama solta que redemoinham por aí; tem um verniz luminoso e vem sempre abarrotada. Não é diferente desta vez: as pessoas quase que se cospem para fora, feitas em rolha.
         O velho Siel vê a garota e interrompe o mover das rodas, as avestruzes que puxam o veículo não se impedem de pensar, algumas de dizer: “Já não era sem tempo!”. Adelaide se aproxima, faceira, cumprimentando ao velho e aos passageiros entediados e aborrecidos. Siel lhe pergunta:
         -Então, guria, você vem hoje?
         Adelaide ouve a pergunta novamente com o mesmo humor das outras ocasiões.
         -Não. Eu fico.
         -Você é que sabe – Dá um puxão nas rédeas, fazendo esganiçar as aves pescoçudas. Antes que se mova, porém, Adelaide, pergunta:
         -Para onde vai levando essa tantarada de gente todo dia?
         -Ué, é fácil... para onde elas sabem que tem de ir – Acena o chapéu e prossegue a viagem.
         Risonha, Adelaide firma o rastelo no ombro, sabendo que ele volta no dia seguinte, e retorna ao pomar. Daí em diante, passa rápido o seu dia. Limpa o pomar, amontoando as folhas em montes de ouro outonal, Pulgão rodeando-a com latidos, algumas vezes se atirando sobre as pilhas de folhas, esparramando tudo, levando a menina às gargalhadas, enquanto corre atrás do cão com o rastelo em riste, ziguezagueando entre as árvores. Findo este dever, ambos voltam para casa. Adelaide come uma fatia de pão, Pulgão outra, e limpa os cômodos. Lava a casa e corre para alimentar sua criação de bolhudos. Eles amam comer a lama que para Adelaide não serve nem pra lixo. Depois, poda as pequenas árvores que dão uma rala sombra à entrada do casebre.
         Um pouco suja, Adelaide se senta, escorada a uma parede, o cão ao seu lado. Algumas das tarefas do dia ficam melhores para depois do almoço. Agora ela há de tomar um banho e forrar o estômago. Resolvido isto, Pulgão lhe conta uma piada. Ambos riem muito.
         -Muito boa. Ele há de gostar dessa.
         Pulgão deixa pender a cabeça para a direita, sem entender.
         -Ele quem?
         -Ele? – Questiona Adelaide.
         -Você acaba de dizer que alguém há de gostar dessa piada.
         -Disse nada, seu tonto.
         Torce a orelha do cachorro, puxando uma de suas asas e corre para o banho. É agradável e rápido o seu almoço, mormente porque Pulgão não se impede de exigir a sua parte. Acontece algo de curioso ao lavar o prato, numa pequena tina no canto da cozinha. Ao tê-lo úmido nas mãos, estica-o como que a entregá-lo a alguém. Percebe então o que está fazendo, olha intrigada para o braço estendido para o vazio, estranha a própria desatenção sem fundamento, estranha ainda mais a sensação de ausência no ar, e, por fim, recolhe o braço, secando o prato.
         Ainda intrigada com seu gesto, vai para a beira do lago e fica ronronando musicas que vão surgindo na sua cabeça. O céu está púrpura esta tarde. Com o cão ao seu lado, aprecia as bolhas gigantes que vão flutuando, algumas mais distantes do solo, outras quase a coçar a terra. Tem em volta do tornozelo uma fita cor-de-rosa, a qual fica torcendo com os dedos desatentos enquanto conta as bolhas. Deita-se na grama, os olhos leves parecendo que vão flutuar para junto daquelas, de repente mais pesados, até que se apagam. Tudo é silêncio no sonho. De repente o trovão de voz, chacoalhando tudo, ecoa pelo céu. Adelaide acorda num salto. Os mesmo olhos arregalados pela surpresa. “Hoje eles vêm mais cedo”, pensou.
         Soa a tempestade outra vez. É uma pergunta feita por uma montanha, ecoando por toda parte, quase fazendo parecer que o céu vai se partir sob seu peso. Não há resposta. Chama a voz apoteótica de novo, o ar repleto delas, gigantes, onipresentes, ensurdecedoras. Umas ligadas às outras. A menina olha para todos os lados, agarra Pulgão pelas orelhas:
         -Vem, vira-lata, que os deuses hoje estão com pressa.
Corre pela extensão do campo à sua frente, o vento assobiando no verde, desviando das torres de caramelo, vermelho e branco, que decoravam o caminho, os muitos cavalos a correrem junto com eles, e vem parar debaixo de uma alta árvore de pétalas rosas e prateadas, as suas flores a saírem voando para a imensidão do espaço continuamente. Para Adelaide, uma mensageira enviando sinais ao céu dos deuses. Esbaforida, ela se ajoelha ante o altar tosco de madeira, cheio de pequenas esculturas tortas de argila, confeccionadas pelas suas mãos, o céu e tudo a chacoalhar ainda, e entoa a oração de agradecimento e adoração que inventara para arrefecer o troar dos muitos deuses que assomavam à abóbada cósmica, com seu colóquio devastador, em horas variadas. Havia também uma outra cesta de frutas que oferecia às estatuetas feiosas e as belas mensagens que prendia ao talo das flores da grande árvore na esperança de que fossem parar diretamente nas mãos desejadas. Perdoassem os deuses a sua caligrafia nunca corrigida e relevassem o seu sacrifício para escalar tamanha obra da natureza, que de tão alta quase lhe permitia entregar as mensagens pessoalmente.
Mas o mundo ainda treme. Aflita, Adelaide ora com maior intensidade, quase a berrar em pensamentos, tão centrada no seu mantra que não pode discernir as palavras construídas pelo desmoronar, para não simplesmente usar o termo “falar”, dos deuses. Assim, Adelaide ora, ora, ora, ora com tanta força, que não pode perceber quando soa pelo céu um novo trovão articulado. E o mundo se sacode em risadas e, em seguida, emudece. É o fim. Demora para que Adelaide se lembre de verificar. Ao apurar os ouvidos, muito depois de se perder nas ondas do seu espírito, nota o silêncio, mais notável que qualquer outro que exista, e se deixa cair sobre a grama. Pulgão se joga sobre o peito dela, lambendo-a, e mesmo as estatuazinhas parecem mais eretas e firmes. Perpassa uma brisa pela copa pululante, uma curiosa brisa que muito diz à garota. Satisfeita, ela goza o carinho da vegetação em sua pele, rindo muito essa permanência das coisas em seus lugares. Lá está o céu ainda de pé. Ela se levanta novamente. O mundo a salvo traz consigo a permanência das obrigações. Que não reclamem do amanhã aqueles que se empenham em mantê-lo contínuo. Chamando seu cão, ela corre para os trabalhos da tarde.
Sua primeira missão é consertar o pequeno suporte onde pendura um violino e seu arco na cozinha. Ela não sabe tocá-lo, achou nas suas coisas um dia, mas imagina sempre algum jovem de talento a manuseá-lo e tem a certeza de que iria amar com certeza o som saído daquelas cordas. Sabe que ama desde já. Dá jeito no suporte, deita o violino sobre ele e aprecia o seu trabalho. É rápida a contemplação. Já está a preparar-se para o próximo trabalho. Pega no quarto o cavalete, uma tela improvisada e sai. Não dá atenção, mas ao passar pelo portão grita “volto mais tarde” para a casa vazia.
Cruza com seus passos jovens uma pequena elevação de terreno, indo se encontrar com uma curva do córrego, metros à frente, diante da qual se ergue uma bela casinha branca, com ladrilhos vermelhos, móveis de madeira e tudo o mais. A única freqüência ali é a do pó. Na porta, uma placa diz: “Ainda volto pra cá quando puder”. E por conta deste aviso, Adelaide teve a ideia, dias atrás, quando explorava a sua terra e descobriu esta casa, de dar ao seu perdido dono uma ajuda com a manutenção. Levou os utensílios anteriormente, e agora veio dar cabo do serviço. Varre, lava, esfrega, martela, encera, serra. Sobe lá, desce cá. Vai enxotando a poeira para uma outra vizinhança. Chega longe a tarde e está tudo terminado. Tomara que o morador não se demore. Por último, ainda suja, ela agarra o cavalete, a tela improvisada, tira dos bolsos as tintas e pincéis e começa a pintar. Faz com a fluidez que só os hábitos podem ostentar. Lá está uma linha qualquer, esta que logo vai enraizando, sem demora se transforma e chega no ápice de uma maravilha de pintura. Tudo feito tão rápido e destramente. Então ela se vira para o cão que observa obediente e pergunta:
-O que achou?
-Que ta querendo espantar de vez o morador daqui.
Ela tenta acertar-lhe com o pé. Erra de propósito. Vai até a sala e pendura o quadro num prego já preparado. O sol está baixo, quase sumido nas profundezas do horizonte. Adelaide observa o alto da hora, pelo céu que vai perdendo da cor luminosa do cristal, e de repente lhe toma o rosto uma nota sombria, a mais sutil caída das pestanas para sombrear o olhar. Pulgão percebe, mas não sabe bem se os olhos míopes o traem, fica, portanto, sem se manifestar. Ela deixa a casa, com os apetrechos lá, e vai para o córrego se banhar. O cão move-se num passo menor, ficando para trás. Abandona a água nua, limpa, o vestido de flores repentinamente é mato, flor e verdade.
De roupa nova, ela sai pelo portão, perfumada, para um último compromisso. Move-se para além das colinas que cercam seu dia e seus afazeres, está nublada, só sente-se assim, a brisa bolinando-a em seus passos. A cabeça comporta a brisa loira dos cabelos. Pulgão aparece por detrás duma torre de caramelo, mascando um punhado de grama de goma.
-Não, Pulgão. Eu tenho de ficar só agora.
O rabo, as orelhas e as asas abaixam. O chiado fino escapa pela boca do cão e ele some por onde veio. Amanhã ele há de retornar. Não importa muito agora. Adelaide caminha um pouco mais, tem nos pés a sapatilha preta preferida, e, após agarrar a um monte mais inclinado até o alto, vislumbra lá embaixo no terreno côncavo no alto duma colina verde a árvore do balanço. Corre os metros restantes, para que o pôr-do-sol não se escape do seu momento perfeito. Eis o tronco, a copa, o balanço. Ri-se rápido, meio amargamente. Senta e se balança um pouco, a verdade até enjoar do movimento, porquanto se larga, às vezes, tolamente, esperando um impulso que não vem. Depois, vai e senta de encontro ao caule robusto, é quando o deitar do sol vai chegando ao seu clímax. Os esfumaços de nuvem são de todas as cores, tudo é quieto demais, o que acontece é grandioso além para que não se suspenda toda respiração e ação. Lá estão os elefantes amarelos do outro lado do lago a contemplar da mesma maneira. Não demora e começa a chuva de estrelas. Quem sabe até apareça esta noite uma dessas que não se mexem e brilham estáticas.
É neste momento, apoiada à árvore, como se deitada sobre o colo cuidadoso de alguém, que Adelaide começa a chorar. Saltam-lhe as lágrimas, essas gotas de sangue prata, que os olhos sangram em nome do coração. O sol vai sumindo e Adelaide chora. Chora porque está triste, por que comoção desconhecida, e não pode mudar isso.
É tarde da noite e a menina está mais uma vez em seus aposentos. Não quer conversa com as paredes, com as horas, nem nada. Vai para o quartinho, despe-se a meio caminho, que o pôr-do-sol não lhe machuque tanto amanhã. Aproxima-se da cama, onde dois travesseiros esperam as cabeças cansadas que hão de confortar. Adelaide deita do seu lado esquerdo e dorme quase instantaneamente. Inconsciente, vagando pelos vapores do sono, não nota que se vira para o outro lado, para o travesseiro vazio, e o agarra para, beijando-o e sorrindo.
-Amo-te.

Do lado de fora, a mãe de Adelaide, com as faces mais exaustas, observa sua filha desacordada, o caixão de pele, ossos e sangue que se tornou a sua criança. Segurando a mão da filha, tem os quadris incomodados pelas horas seguidas que esteve ali sentada. Como foi que aconteceu da sua princesa devorar a si mesma de tal jeito? A Adelaide ali deitada está ligada a parelhos e é bem mais velha que a Adelaide juvenil de dentro, tão pálida, tão sem a magia que outrora lhe brota dos membros compulsivamente. Na cadeira à frente da sua cama, um rapaz esgotado dorme. Esteve ali por horas. Seus olhos observando a constância do sono de sua mulher, tão consumido da esperança de vê-la outra vez a acordar. Traz no pulso uma fita cor-de-rosa. Tudo que deseja é ouvir sua amada dizer outra vez que o ama. Inconsciente, não imagina que ela o diz toda noite. E que vive a precisar que o digam também a ela.
Não sonha Adelaide que aos seus deuses basta que diga um EU TE AMO capaz de cruzar a carne insone para que cessem de sacudir o cosmo.

domingo, 23 de novembro de 2014

O Trabalho Ingrato de Natanael Arago

Era noite e Natanael seguia por uma das vielas do cemitério como sempre fazia, as flores emprestando aos hóspedes um perfume que fazia dos túmulos pousadas enfeitadas de damas perfeitas. O rapaz vinha despercebido; o guarda dormia. Caminhava ligeiro, ouvindo as vozes ansiosas, perturbadas, agoniadas. Gemiam como se queimassem. Quando dera a noite, atrasado pelo sono, foi acordado pelo urro do tormento eterno e, apressado, agarrou seus cadernos, vestindo-se de roupas amarrotadas, e pulou a janela, esquecendo-se de trancar a porta, correndo o risco de ser descoberto em sua jornada secreta por alguém da família.
Todos os seus papeis bagunçados vinham debaixo do braço, e a velocidade dos seus passos fazia um e outro voar de vez em quando. Isso apenas o deixava um pouco mais aflito, e, apesar do conhecimento da substância densa do sono do vigia, nesses momentos, levantava o olhar ansioso na direção da guarita. Nada acontecia. Os gritos não podiam alcançá-lo. Mal sabia este e todos os outros o quão gratos deviam ser ao Criador.
Firmou mais uma vez o seu material e prosseguiu. Correu para as ruas do fundo, guiando-se com destreza na escuridão. O silêncio parecia ser uma fantasia perturbada, sendo o barulho em seus ouvidos a realidade escoando por todos os orifícios do tempo e do espaço. Mais para o fim do cemitério, o perfume era modesto, a vegetação escorria por tudo que era vertical, e toda superfície parecia sangrar umidade. Natanael permitiu-se guiar pelos gritos, indo ter com aqueles que fossem mais intensos primeiro. Benditos também os mortos que não se podiam perturbar.
O desespero de Ada era retumbante esta noite. Sua foto estava velha, amarelada, desfigurada, decompondo-se no ritmo de sua forma real. Pingos de água aqui e ali soavam como as teclas dum piano ilustrando um pouco mais a melodia tétrica da alcova dos seus ouvidos. Sentou-se sobre a sepultura dela, cruzando as pernas, afagou os braços para gerar uma fagulha de calor, separou umas duas folhas do seu molho e começou a ler, após um pigarro introdutório. Narrou aquele poema que podia recitar sem ajuda, tantos foram os mergulhos que dera sobre ele. Chegou mesmo a encenar os movimentos, conforme as estrofes. Lera os quatro preferidos de Ada e, flutuante, foi vendo diluir, no silêncio subliminar da noite, os gritos que vinham do seu sepulcro. Nisso, permanecia um tempo considerando qualquer coisa, a erva sobre a pedra parecendo compor-lhe um afago em suas contorções. “Durma bem, querida!”, disse e pelo resto da noite seguiu peregrinando pelos túmulos, cessando a agonia das moças. Na sepultura de Crisálida, deitou-se e cantarolou; cantou uma dúzia de músicas que fizeram-na cessar. A idade fixada na tumba era um disparo para os arrepios do rapaz, que não conseguia se acostumar à atmosfera que empestava os cômodos daquela moça. Teria algum jovem cantado para ela no passado? Faria jus a sua voz apaixonante, que nem a morte podia destituir do seu encanto?
Com Irene, acomodara-se ao seu lado e começara a conversar. Fazia perguntas, e uma sensação que lhe subia a espinha fazia-o crer que tinha sido respondido. Ali, sentia-se diferente. Gostava do local. Uma pulsação morna irradiava daquelas profundezas, uma gratidão reconfortante. E por todas essas ocasiões o silêncio ia se tornando mais substancial, mais palpável. Os gritos que restavam eram menos intensos, porém, deveras tocantes. Pareciam sugerir, apesar de sua menor potência, uma dor intolerável e de tal maneira opressora. Natanael caminhava e, ao fazê-lo, tinha a impressão de que vagava por uma floresta, de árvores densas, labirínticas, sendo atraído pelo eco das suas ninfas ao berço dos carinhos e prazeres, indo, porém, perder-se nos muitos abraços da noite sufocante.
Para Lauriene só bastava que se encostasse a ela e seu suplício terminava. Morreu gelada, louca pelo último toque do calor de seu amado. Concluía rápido com ela, mas não prosseguia ligeiramente. Impedia-se por um momento frente a uma sepultura silente. A criatura ali abarcada era linda, sua imagem tão viva, nada deteriorada se exibia diante do sepulcro. Se fosse preciso, acalmar-lhe-ia as dores com disposição, correria primeiro a ela, e às outras, atender-lhes-ia com ligeira obrigação ao fim da noite. A insatisfação, porém, não lhe acompanhara à clausura. Retornando à consciência da agrura do seu dever, recordando o som agudo que tinia em suas orelhas, apalpando-as, tentando agarrar-se às beiradas do precipício, Natanael avistou a alameda que faltava para terminar sua jornada. Deu uma última olhada de viés à figura de Lucile, ajustou os cadernos sob o braço e seguiu.  
Veio o arrefecer do negrume; Natanael caminhou até Vidiane. Tocou-lhe a pedra do mausoléu, acariciou-lhe a frieza. Esse era sempre o momento mais tenso da noite, quando sobrava um único desespero para curar. Os gritos interrompiam-se de repente, o ambiente ficava rançoso, fluido, e Natanael conseguia ouvir o flanar crescente do vestido. Nesse instante, fechava os olhos e se preparava. Pareciam vir presenças correndo para ele de todas as direções. Virava e encarava a silhueta nublada, a figura de bruma que vinha se insinuando até ele, surgida do nada. Os braços, como fumaça, cingiam-no, ele cingindo a cintura etérea. Começava então a dança. O solo ia desaparecendo num cobertor de névoa, que parecia alimentar aquela criatura, tão insatisfeita, tão abruptamente não concluída, essa reticência que clamava à escuridão pela sua realização. Dançaram pelo que sempre parecia a eternidade. As flores pareciam cantar para eles. O garoto sentia vibrações em seus lábios, então, um gosto amargo preenchendo sua boca. Umas figuras invadiam sua mente, colorindo com uma sobrecasaca de ambientes recordados o âmbito do cemitério. Quase podia ouvir a canção dum baile. Rodopiaram, e a nuvem que cobria o chão foi escoando. Vidiane foi tornando-se uma sombra cada vez mais pálida. Era o fim do ritual. Foi o momento marcado em que ela, sem expressões, só uma silhueta glauca, disse:
-Vais me deixar?
-Vá dormir. Pela manhã eu volto para lhe arrancar dos sonhos nos quais te ponho deitada agora.
E Vidiane sumiu sem resposta. Na noite seguinte Natanael voltaria e ela não mais lembraria de sua promessa. Seria só a sombra desesperada e sedenta de novas promessas.
A manhã ia se apresentando. Com seus cadernos e papeis, Natanael deixou o cemitério, seguindo lento para sua casa. Tudo era silêncio, até o barulho da cidade acordando era silêncio. As vozes morreram, tornaram-se as vozes apropriadas dos seus corpos mortos. Sinistro seria se a maré de perturbação fluísse para além dos seus ouvidos. Mortos e vivos estariam em desespero. Ele ia agora para seus aposentos, atirar-se ao descanso nos braços de suas noivas inquietas até que elas despertassem para chamá-lo outra vez.  

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Estrada Anônima




Hoje um garoto quase foi atropelado enquanto caminhava descuidado por uma rua. Seus passos sombrios rompiam o silêncio sorumbático da estrada anônima.Uma estrada que não se importa com seu nome nem com seu estado emocional, estava ali, para conduzi-lo a um caminho sem volta.

A cada passo uma palavra era formada em seu dialogo interno, uma conversa tão intensa que só nós mesmos somos capazes de realizar.

-Hoje tive um tive um dia cansativo disse o garoto, em seguida uma voz rouca  e familiar respondeu -Você sempre tem dias cansativos, e cansa inclusive quando descansa.

-Tem razão disse o garoto -Talvez seja por isso que eu esteja caminhando, já descansei tempo de mais. -Você já parou para verificar o lugar sinistro onde nos metemos? Disse a voz interior -Podemos correr sérios riscos ando por aqui.

O garoto refletiu e logo concordou. Quando resolveu voltar para casa uma luz no final da estrada dissipou as trevas que ali estavam, revelando um veiculo em alta velocidade.

A iluminação cresceu diante de seus olhos, lhe ofuscando a visão, evidenciando um perigo mortal. Sua voz interior liberou um grito de desespero, fazendo com que uma reação rápida fosse tomada.

Após a experiência chocante o garoto recuperou o fôlego e levantou-se do asfalto, ainda ofegante foi compelido a um pensamento iracundo e ao mesmo tempo nostálgico, onde uma simples estrada pode ser sombria e demoníaca, ao ponto de te iluminar com os faróis da incerteza. 

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O Definitivo Começo - Cidade de Bruma




O cemitério era uma terra esquecida, sem horas, momentos, circunstâncias, donde brotavam espigas de pedra, rígidas como que em adoração ao banho do sol que as vinha lavar diariamente. Sepulturas que se compadeciam umas das outras visto que, abandonadas, não tinham senão a sombra das lápides vizinhas para lhes fazer vigília, e, raras vezes, os pingos que caíam de nuvens passageiras a lhes acariciar a superfície num rápido lamento. Ademais, era de tal modo vazio, que se podia conjecturar, em nossa população, um supersticioso respeito pelo sono dos mortos, não menos considerada uma cautelosa conduta de não lhes perturbar sob a ameaça imaginada de alguma vingança terrível.

Não de todo livre da presença humana desperta, porém, havia ali um velho vigia que podia ser encontrado, quase todo o tempo, frente ao portão do cemitério, escorado numa cadeira escorada a uma coluna borrada de cal aguada, deveras despreocupado com o que pudesse acontecer de remoto dentro dos limites estagnados que, por mister, devia resguardar. Logo, foi por este velho indolente, de bochechas liquefeitas, impossibilitado de sorrir pelo desmoronar dos alicerces de sua face, que passamos rumo ao centro do campo-santo, em busca do túmulo de Jonas. Lançou-nos um olhar de incômodo como quem desejasse se interpor em nosso caminho, contudo, ainda que o tencionasse com coragem, havia nele muito menos disposição em nos seguir para além dos muros que barravam aos mortos sua nefasta influência sobre nossa cidade. Assim, nada fez que não nos observar indo para longe e sumindo ao dobrarmos uma esquina.

Com passadas ligeiras sobre o terreno pedregoso que protestava num alarido crocante, concedíamos ao lugar um aparato de vida que com capricho e veemência se manifestava, como se o próprio retornar à vida dos hóspedes fizesse tremer às bases da terra, anunciando com seu eco numa trombeta de pedregulhos a imponente marcha dos zumbis a todo o mundo, e procurávamos chegar a nosso destino o mais rápido possível, não de todo conscientes da raridade do episódio que protagonizávamos ao emprestar àquele ambiente movimento, som, respiração, ação, mas unicamente centrados em nosso fim. Porém, quando alcançamos o funesto sepulcro de nosso conhecido, o que buscáramos com tamanha sanha, estacamos, de repente tocados, tomados, por um fato que até então consideráramos como se fosse uma verdade já superada, uma lembrança de outros, ou uma lenda dessas com a qual se acostuma como natural, mas que quando confrontada nos abala por inteiro e nos arranca do solo estável no qual aprendemos a nos equilibrar.

Sob a tutela ácida, metálica do sol, encaramos a estrutura definitiva que envolvia Jonas duma maneira tal, numa tal solidez, que, a mim, pareceu ser a decomposição do seu cadáver um espetáculo ainda mais terrificante que o de qualquer outro, a negação perpétua do seu futuro, uma abominação insuportável contra todo o curso de nossas esperanças. Não obstante nos surpreendesse, chegamos mais perto. A consciência teve então de admitir, frente à lápide e sua tosca gravura: Jonas estava mesmo morto. Não que duvidássemos, mas por algum motivo deixáramos de pesar a ideia com a real densidade que lhe competia. Ajoelhei e observei; ao meu lado, a respiração abafada de Santiago se fazia ouvir, sua máscara camuflando a teia deformada de expressões que trairiam seus sentimentos. Nada falávamos, e nosso silêncio era quase capaz de toldar a luz do dia, tantas eram as sensações que entremeavam sua constituição. Creio que estivéssemos perturbados, machucados em nossa vaidade. Se nos incomodava tanto encarar a resoluta sepultura, assim acontecia porque sentíamos que o desfecho se produzira contrário às nossas necessidades. A trama se encerrara de modo tão brusco que todos os atos ensaiados e adiados com confiança foram decepados e despejados sobre um fim abismal, perdidos pra sempre no fosso escuro das ações não realizadas, sem pudéssemos agarrá-los e prometer uma resolução alternativa. 

De repente, a voz de Santiago escapou pelos frisos da máscara:

- Eu o odiava. E agora que está morto, percebo que o odeio ainda mais.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Páginas em Branco



Certa vez, me sentei e vi suas páginas em branco. Elas descreviam o que é você; elas contavam muito sobre tudo o que sente. Eu não conseguia encontrar uma única palavra naquelas páginas em branco, mas elas me contavam o segredo mais profundo, o seu sonho mais íntimo, a verdade escondida por trás das palavras invisíveis. Você se escondia.

Certa vez, me sentei e deparei com suas páginas em branco. Vez ou outra encontrava palavras soltas e desconexas no meio das páginas em branco, elas não combinavam em nada com o que parecia estar escrito, estas confundiam a história. Eu chorei!

Sentada em frente as páginas em branco, uma caneta, decidi sub-escrever e traduzir todas as palavras das páginas em branco. As páginas rasgaram, as páginas choraram em silêncio absoluto; elas sangraram. Me arrependi.

Certa vez, eu sentei em frente as páginas em branco. O vício por ler aquelas palavras inebriaram a minha mente e a minha alma. As pessoas perguntavam: O que você lê tanto? Não existe absolutamente nada! Mas elas não entendiam a profundeza das páginas em branco. Elas contavam uma história, aquelas páginas em branco.

Certa vez, me sentei em frente as páginas em branco. Eu me sentei na frente destas páginas por toda a vida.

Todas as noites as colocava sob meu peito, as suas páginas em branco. Agora faz tanto sentido.

Hoje eu me sentei em frente as suas páginas em branco. Aquelas que você tinha deixado para eu ler. Hoje eu finalmente as entendi.


Aquela seria a última vez que eu leria as suas páginas em branco. Elas escreveram: Adeus!

Uma nota sobre Aniversários

                               
                     
                               Eu sempre achei que os planos eram para ser feitos no começo do ano. Sempre pensei que o melhor momento para pensar na vida era justamento no limiar entre 31 de dezembro à 1 de janeiro. Mas a verdade é que cada pessoa tem seu momento, cada pessoa tem seu ciclo. Este é o dia do seu aniversário, este é o momento certo para pensar na vida e fazer próximos planos. É o momento de lhe propor novos desafios e iniciar aquela dieta que você adia a três anos novos.
O Ano novo é o aniversário do mundo. Não sabe-se ao certo se é realmente naquela data, mas se convencionou assim.
Seu aniversário é uma data unica, todos os seus pensamentos envolvidos naquele ciclo, não são os mesmos do ano anterior, você cresce, evolui, desenvolve. 

Pense nisso no seu próximo aniversário. 

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Adiante




Não sei que motivação me comove; meus pés conhecem meu destino. Não fui feito de sonhos, mas de suspeitas. No palpitar do peito, pululam profecias.
Em palavras de livro ensaiei a vida. Metidos em frases imperativas, homens e mulheres tentaram tomar de mim o cosmo. Não lhes satisfiz.
Amanhã recomeço. Faço do meu corpo escravo por necessidade da verdade.

sábado, 30 de agosto de 2014

Rocha e Rio






Não sendo rocha,
Empoeirada e impaciente partícula
Sobre o chão, de atalaia,
Observando o veio da vida
Correr constante, sem mim,
Submerso no fundo do tempo,
Mudei, queimei, ardi,
Das muitas formas que pude.
Eis que me conheci, e me esqueci.
Participei, dissipado, alienado,
Perdido no mar de verde, no mar de cores
No mar de tudo.
Estranho, profundo e mudo.
Dei espaço aos sentidos. Aprendi.
Outrora sentado, sendo,
De repente, de pé, indo atrás de mim;
Nas veredas da manhã, fugitivo
Do último pedaço de sono,
Balancei nos braços as opiniões
E as ensinei a montar e correr
No lombo da voz.
Um dia minhas,
Fossem então viajar o mundo.
Completo, talvez,
Não sendo pedra,
Fui mais um desgoverno da vontade
E fluí, como sangue, nas veias do tempo.
E circulei, dando forma,
A própria essência do todo.

Vestida de Lua, Ouvindo Estrelas




Tergiversando com estrelas, sou este servo das horas comuns,
Assim chamadas por homens comuns.
Peguei numa conversa uma e outra ideia cadente,
Que, vindas do céu, em palavras de fogo, ateiam em astro
Qualquer coração.
Sentado, manuseando as constelações com meus olhares,
Cutucando colmeias de brilho, logo estará de todo pronta a canção.
Busquei o conhecimento das estrelas para te compor esta canção.
Quem sabe mais do amor, ou da vida?
Certa noite, quando empunhar o mundo a escuridão, vista-se no brilho da lua
E venha ouvir o que me ensinaram as estrelas
Sobre você.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Indecentemente Pesaroso

Helton Padilha era um pé no saco.
   Aquele tipo que você quer evitar; e eu quase sempre conseguia; mas é claro que ele não ganhou sua fama de inconveniente deixando eu me safar com minha desvontade de encontrá-lo. Tampouco ele permitiria que eu, talvez, me afeiçoasse a ele por sua ausência. Eis o que há: algum conhecido nos apresentou, como que para tirar o fardo de sua amizade dos pés e caminhar por aí levemente; e caminhou.
   A coisa sobre os indesejáveis é que eles nunca o são logo de cara. Portanto, posso ou não ter comprado meu próprio estorvo com alguns sorrisos simpáticos e aparente interesse por uma história qualquer; na verdade, é difícil  dizer se isso fazia qualquer diferença para o velho Helton ou se ele habituara-se a se aproximar demasiadamente de qualquer um que fizesse questão de lembrar seu nome.
   Com efeito, eu me lembrava de seu nome e, pelo mérito de suas constantes visitas, também não deixou que me esquecesse de sua feição. Reluzia sobre suas grossas sobrancelhas um moreno escalpo livre de qualquer fio, o que em conjunto com a maltratada pele não deixava dúvidas de que era bem mais velho que eu, apesar de sua baixa estatura. Era bastante franzino também, o que se fazia notar principalmente durante os muitos acalorados e inoportunos abraços que, regularmente, me aplicava, fazendo que me sentisse como se abraçado por uma coluna de mármore.
   Existia qualquer fator que lhe emprestava um ar de malquisto que era capaz de tombar borboletas primaveris em pleno adejo; talvez fosse por forçar-me a uma intimidade que não nos dizia respeito, por excesso de anedotas repetitivas e sem graça, ou pelo jeito que não tirava os olhos de mim o tempo todo, como uma garotinha curiosa; eu jamais soube dizer. Aliás, aí está algo que me punha em alerta; que suas atitudes não fossem oriundas da camaradagem de um impertinente, mas da paixonite de um pervertido. Por vezes, cheguei mesmo a me enfurecer com o seu apalpar em meu braço e gritei que se danasse e ficasse longe de mim. Era nauseabunda a ideia que, ocasionalmente, tinha de que ele fosse como um desses maníacos contidos que aproveitavam-se como podem da fragrância púbere de um garotinho e do que se pode tatear de sua pele, para que possa delirar sozinho, aliviando seus anseios com a memória sensorial que furtara, impercebido, de sua vítima. Mas não era ele um maníaco, nem eu um garotinho. Se havia algo que ele poderia ser era um efeminado, o que pra mim não era tão diferente.
   Muito pouco ainda sei, sem dúvidas devido a um agudo desinteresse, da vida deste que me aporrinhava. Não devo tê-lo visto com mais que dois pares de roupas, o que, deduzi, era em virtude de seu trabalho como vendedor ambulante de balas e doces, que não poderia fazer mais do que sustentá-lo. Na verdade, não sabia se necessitava sustentar-se, pois sequer era de minha ciência se tinha ou não família. De qualquer maneira isso lhe dava todas as condições e o tempo que necessitasse para vir gastar comigo, convidando-me para um almoço, ou um refresco, ou, que se dane, só uma voltinha por aí.
   Vá com Deus, ele dizia em nosso melhor momento, quando nos despedíamos. Pode ser que fosse apenas isso: um cristão a dedicar-se ao amor a sua própria maneira esquisita. Por certo recusei inúmeros de seus convites de ir à igreja que frequentava; não que me incomodasse seu proselitismo, apenas, como dito, não nutria nenhum interesse especial por sua companhia a longo ou curto prazo.
   Não há muito Helton veio fazer-me mais um de seus convites: um almoço na quinta-feira que estava próxima de seu aniversário, e, dessa vez, me pareceu mais insistente que de costume, de modo que não pude simplesmente recusar ou engendrar uma nova desculpa ao constatar que já havia esgotado todas as velhas e plausíveis. Disse-lhe que pensaria e agarrei-me à esperança de que o acaso não nos fizesse esbarrar por aí; e não fez.
  Jamais soube exatamente o que significava para ele, mas deve ter contado de mim à quem conhecia, pois seus companheiros de igreja me procuraram certa manhã. Helton morava na rua; não mantinha contato com o pouco de família que lhe restava, talvez até mesmo eles o evitassem; não era velho também, tinha apenas alguns anos a minha frente, e, deixara de resistir na noite anterior ao câncer de pulmão contra o qual lutava, com recursos de doação, havia 6 anos.
   O impertinente e velho Helton estava morto.
   Não tive a indecência de dar as caras em seu enterro e não julguei necessário. Sabia que chegaria muitas vezes, dali em diante, a sentir na penumbra vivaz da madrugada, oscilando entre sonhos e realidade, o sufocante cheiro de flores e formol da morte, a perfurar meu âmago, envenenando-me com vulgar remorso; e eu deixaria que a Culpa percorresse minhas veias, oxidando-as, e se abrigasse em um sombreado canto de meu espírito; sem impedi-la de me fazer perceber a essência das atitudes de alguém que já não está mais aqui. Perceberia, então, que se me constrangia com algum forçoso abraço era porque não havia um amigo ou mesmo um familiar que o concedesse por boa vontade, fazendo-o vir a mim, um qualquer, para que suprisse sua necessidade de calor humano; e sucumbiria, tardiamente e sem lutar, ao pungimento desse pensamento.
   E se desde então Helton vive, para mim, em cada rosto novo e atitude amigável é porque o carrego, de alguma forma, aqui: na memória, como um pesaroso abraço indesejado; e na consciência, como uma substância apodrecida, de destino e forma indefinidas, mas que se originou de uma ternura que não foi gasta. Não com quem precisou. Não quando era possível. E agora nunca mais.
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Hoje você faria 31 anos; descanse em paz, amigo. (29/08/2014)

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Sede de...



Imerso na atmosfera sombria do bar, apagado pelo véu de fumaça de cigarros, desorientado pelo cá e lá das muitas vozes, aquele mesmo homem de um outro dia novamente ocupava o lugar no balcão diretamente oposto à porta de entrada, cabisbaixo, bem vestido, fitando o copo meio vazio, como se, a essa altura, já tivesse se apercebido que a bebida não o preenchia como precisava que o fizesse. O bar, como uma cova, abrigava muitos cadáveres do fim do dia, que iam enterrar suas carcaças e buscar a ressurreição de sua alegria nos vapores do álcool. Com ele não era diferente. Não obstante, cada vez mais se dava conta de que não poderia, por esse meio, alcançar o menor resultado, que o esvaziar dos copos, longe de resolvê-lo, representava uma tragicômica versão inanimada da sua realidade.
O balconista, criatura seca, sem lábios, de sobrancelhas escassas, gostava, entre um gole servido e mais outro, de observá-lo. Tinha curiosidade pela abstração e infelicidade do homem. Era o mesmo sujeito que certo dia chegara até ele e com aflição pedira um gole de metafísica. Na ocasião, ficou sem saber o que dizer. Preferiu não se irritar, e, desde então, sempre que restavam apenas os dois no bar, agarrava uma garrafa próxima e lhe servia uma dose grátis.
Não conversavam nada, embora sentissem que se entendiam bem. Talvez achassem, na cor vermelha dos seus olhos, que tinham cicatrizadas no rosto as marcas da mesma amargura. Em realidade, não era bem assim. Contudo, serviam-se eficazmente de companhia.

-Ainda te devo aquele gole de metafísica... – comentou o balconista. A essa altura, acreditava poder espiar por debaixo da circunstância silenciosa que cobria o seu amigo.

-E é hoje que vai me pagar a dívida?

-Acredito que não. Pensei, pensei, mas não acredito que tenha encontrado a porção de irrealidade que te tire os pés daqui.

-As outras bebidas já não me servem mais. Nem sei se já serviram. Eu apenas não tenho ideia do que fazer. Ou mergulho nessas doses ou vou mudo para a gaveta todo fim de tarde. De qualquer jeito, estou me despedaçando.

-Por isso mesmo, quem me garante que, ao, finalmente, te servir o teu necessitado gole de metafísica, eu não estaria te despedaçando ainda mais quando tu percebesses que nenhum dos teus problemas mudou, que o teu vazio continua aí?

-Não. Será diferente. Porque então bebê-la-ei todo dia, pela manhã, tarde e noite. Estarei tão embriagado que não mais poderei acordar quando tropeçar nesses fatos e rotinas. Não. Estarei inteiramente ébrio. Seu calor será como uma nova alma, uma nova perspectiva. Bêbado dela, com os olhos turvos, sorrirei para tudo aquilo que então me fez chorar. É o que faz a metafísica: dá aos seus bêbados a insensibilidade. – e apoiou o rosto sobre a palma da mão direita, sentindo a precipitação daquele sabor pela garganta. –Dê-me um pequeno gole que seja e nunca mais verá este farrapo de homem diante de ti.

-Estaria em suas mãos, se eu a tivesse aqui. Infelizmente, bem sabe que não. Mas não desista, companheiro. Não é difícil topar com um embriagado desses por aí. Portanto, não deve ser difícil de se embriagar tampouco.

-Pois é... – sussurrou o homem.

Com a mão livre, fez deslizar o copo para perto da garrafa amparada pelo balconista, que virtuosamente converteu mais uma dose para dentro do receptáculo vítreo.

-Bem, este não é o caminho, mas, por enquanto, é o que posso tomar... Vou andar em círculos e tontear. Uma solução temporária...

Mais uma vez, depois de tragada a anterior, o balconista lhe serviu outra dose.

-Posso saber como acha que devia ser? – perguntou.

-Diferente.

-Mais feliz?

-Acho que sim.

-E o que é felicidade?

-A mais maldita palavra que já se inventou. Uma maldita droga, da qual já nasci dependente. E pela qual rastejo por aí, e cujo gosto, que vivo a imaginar, torna tudo mais amargo.

Nesse instante, o balconista observou o homem, imaginando-se muito ingrato para com ele. Perdeu-se, por um momento. Enquanto divagava, sentiu o súbito movimento a sua frente. O seu companheiro ia saindo do bar. Amanhã estaria ali novamente. Podia não encontrar naquele bar a sua quantidade entorpecente de metafísica, porém, voltaria e beberia, sem alternativa. Que miséria!


De repente, tomado de absurdo transtorno, o balconista se voltou para sua estante ampla de bebidas, místicas sedutoras, promíscuas beldades. Agarrou do extintor de incêndio sob o balcão e arremessou contra as garrafas. Às que ainda estavam intactas, varreu com um solavanco, fazendo reboar pelo bar uma espécie de sinfonia apocalíptica e um amargo dilúvio. De algumas, chutou os pedaços maiores para longe. Depois, sozinho à meia-luz, revirou as mesas que conseguiu e caiu ao chão, exausto. Havia um pouco de sangue entre seus dedos, e o contemplou escorrendo com satisfação. Fora corrompido por uma iluminação, talvez. Não sabia ao certo. Todavia estava satisfeito, pois julgava haver algo de justo naquele ato insano. Amanhã, não mais estaria indicando às pessoas o falso caminho, nem lhes oferecendo péssima companhia.

Esperança

Nascemos do ventre morno
do mundo,
No frio que é o amanhã
Nos imaginamos.
Foi uma cova pequena
Cavada pela ilusão
do tesouro.
Não obstante a dor,
Sorrimos.
Aquecidos num aperto
de mão
Galgamos possibilidades
Perdidas.
E confrontamos, por fim,
com um produto de lágrimas
Plantadas no passado.

Anônimo no Anonimato em algum lugar do tempo

Crônicas sobre escolhas

"Ser ou não ser? Eis a questão", já dizia William Shakespeare quando indagava a respeito de suas dúvidas. Pergunta essa que paira no ar, ainda hoje, e sem resposta. Quando nos foi dado inteligência e conhecimento do bem e do mal, surgiram as dúvidas, claro! As dúvidas mudam de tempos em tempos, mas ainda estão ali.
Que atire a primeira pedra, mesmo o que se jugar confiante sobre as próprias decisões, aquele que nunca teve dúvidas das coisas que acredita.
Para mim, a pior das dúvidas é: o que quero ser? Artesão, músico, engenheiro, advogado, médico. As opções são infinitas. Mas e se eu não quiser nada? Por que limitar o potencial a opções já predefinidas? E mesmo que eu tenha um diploma, por que tenho que dar certo?
Por falar em dar certo, o que é por definição essa expressão? Dar certo é ter remuneração, aceita pela sociedade, ter carro do ano, poder viajar, ter filhos, uma família; dar certo é ter como vida uma propaganda de televisão. Isso não é dar certo!
Quanto às escolhas, hoje pensei, não quero felicidade, nem prosperidade, não quero ter uma vida idealizada por outros. Hoje pensei que quero viver, e que as maiores dúvidas na minha cabeça sejam: Será que faz sol ou chuva?

domingo, 24 de agosto de 2014

Cria Ingrata



-Começo por rabiscar uma página de rascunho... – o rapaz disse, interrompendo-se perante o imperativo gesto da mão do seu anfitrião.
-Eis um ritual que não transmite qualquer matiz de eficácia a quem o imagina num primeiro momento.
-O senhor, meu caro, há de notar a sua proficiência se me permitir terminar a explicação dos meus métodos.
-Eis uma disposição que não encontro em parte alguma do meu ser. Na verdade, se o trouxe aqui foi pelo prazer de demonstrar o quanto desprezo toda sua obra. De fato, não consigo imaginar o mínimo proveito em seus escritos. Incomoda-me imaginar suas inspirações, uma vez que, por análise da estrutura e frieza de seu texto, só consigo concluir que elas são as mais pobres e doentes.

Boquiaberto pela audácia do homem, Natanael mal conseguia driblar a instantânea gagueira que o assaltou, inundado de surpresa. Ei-lo debochando de seu trabalho, algo que não esperava, tamanha era a fé que depositava em seus últimos esforços. O sorriso leviano sob o bigode ralo supunha uma malícia faminta.

-Tente entender...
-Garanto-te que não tentarei. São bastante firmes as minhas opiniões a respeito da sua obra.

Mas Natanael procurou não ceder e responder com inflexibilidade à inflexibilidade. Foi com o mais nobre ensejo de aprovação que se dirigiu para tal encontro. Não entregaria os pontos por menos que o fazer-se entender.

-Há nesses meus escritos uma...

Fora cortado mais uma vez.

-Diabos! Nada de considerável pode ser dito em suas explicações. Que me diz dos seus personagens? Acha que merecem o fim que lhes concede? Ou que é justo o ambiente psicológico enfermo que se lhes apregoa?

-Que posso fazer? Há um propósito por trás de toda a dor. Há um plano. Veja bem...

-Não! Não o vejo. Quero distancia de seus métodos e razões. Pouco me importa a sua medíocre visão superior. Para longe de mim com sua maneira de organizar as coisas.

-Ora, é preciso que compreenda...

-De forma alguma. A mim basta que enfeie os personagens, espaços e situações com sua estética. Sofrem e ainda o fazem de maneira suja. Maldita seja a visão míope a que os condenou! Tudo em nome do seu bendito plano. Que importa que os deu à vida, se lhes impõe um inferno como pagamento. E que esperança podem ter, se nestas páginas ficam condenados a eterna representação dessa danação?

Então, já não cria Natanael que pudesse se desvencilhar dos arraigados obstáculos cravados por esse indignado senhor. Tamborilando os dedos, com resignação forçada, disse:

-Quer dizer...

-Quero dizer que nada me agrada mais que me ausentar dessa selva tecida em linhas tortas com uma pena sádica salpicada de sangue.

-É sua decisão?

-A única.

-Ok.

Frustrado, as faces levemente pesadas de desânimo, Natanael agarrou o sujeito pelo colarinho e o atirou para dentro da lareira, observando-o entrar em combustão com um sorriso carbonizadamente satisfeito. Em seguida, quando haviam sobrado apenas cinzas do homem inconformado, o rapaz deu meia volta e saiu do cômodo. Fechada a porta, estava de volta a sua mesa de trabalho, a caneta, criadora incansável, na mão, procurando encontrar um personagem menos contrafeito a sua sina. 

sábado, 23 de agosto de 2014

Quem Estava Ali?




Tive minha dose de distâncias nessa vida. Fui descuidado em minhas caminhadas, mormente com meu corpo. Tanto que, aos 25 anos, já falo com um sotaque de velho matreiro e carrego no rosto rugas pérfidas que me mentem a idade. Mas não me envergonho da minha velhice estranha e precoce. Se assim cheguei, aqui, às minhas duas décadas e meia, foi porque vivi o bastante e com orgulhosa entrega. E nessa corrida louca conheci de tudo que poderia querer conhecer: pessoas admiráveis, lugares divinos e histórias, as mais variadas histórias.
Algumas delas passei para o papel, e, de todas as minhas recordações e pequenos artefatos conquistados, as histórias sempre me parecem mais valiosas que todo o resto. E uma delas, a que primeiro escrevi no caderninho surrado, e que, vez ou outra, gosto de reler, é a que mais me encanta. Um pequeno garoto, um pequeno amargurado que, desde muito cedo, aprendeu a não acreditar nas amizades, certa ocasião, contou a mim o seu drama.
Amuado e desconfiado dos meus sorrisos, Tomás confessou que tivera um grande amigo há um tempo. Brincaram muito e todos os dias. Tinham gostos parecidos. Aonde um ia, lá estava o outro. Eram mesmo malucos da mesma forma. E o quer que assustasse a um deles, pouco afetava o outro. Completavam-se e se protegiam. Aprendiam e ensinavam-se.
            -Que nome tinha? – perguntei.
            -Nunca disse. Pra ficar fácil, chamei ele de Cabeça de Balão. Subia nas árvores e dizia que tava procurando pra ver se achava o navio que tinha abandonado ele na cidade.
Lembrou de tudo que faziam juntos, todas as grandes aventuras que fantasiavam, e evocou um fatídico dia em que sentaram sobre a ponte velha da cidade e imaginaram como seriam adultos corajosos e charmosos.  
Não o foram, ao menos não juntos. As pessoas grandes logo se fartaram da amizade que tinham. Os pais, irmãos e outros, já não podiam suportar uma criancice que ia para os lados da loucura. Berravam com Tomás e o proibiam de abrir a boca. Ameaçaram mesmo agredi-lo. Homens eruditos chegaram a palestrar-lhe um sermão sobre o verdadeiro amigo da humanidade. Houve também os que não deixaram de ver a coisa sempre com humor, mas que nada demonstravam por respeito à família e assim colaboravam com a repressão às necessidades de Tomás.
            -Pare de falar desse pequeno demônio! – berrou alguém no escuro de um pesadelo.
Chegou, então, o dia em que Cabeça de Balão apareceu e arrastou Tomás até um canto silencioso da ponte velha. Ali, mostrou ao amigo um pequeno baú e disse:
            -Fui de noite à sua casa e peguei de você um pouco do que também peguei de mim: um pouco da nossa amizade. Vamos enterrar aqui, num lugar seguro, pra que fique bem protegida dos adultos. Assim, ninguém vai destruir de vez aquilo que faz a gente brincar junto.
Enterraram o pequeno baú, ainda que Tomás não entendesse direito o que fazia. Por fim, sentaram-se mais uma vez sobre a ponte e algo no sumir do sol no horizonte tirou deles toda a vontade de falar.
Foi assim que passaram seu último dia de amizade. Cabisbaixo, a voz a falhar, Tomás lembrou que não teve mais qualquer notícia ou visão de Cabeça de Balão. Quase como um fantasma, em muitos dos dias que se seguiram, podia-se vê-lo parado sobre a ponte velha, ou sobre algum ponto alto sobre os telhados das casas a observar.  Até que se cansou.
            -Nossa amizade ficou enterrada lá – disse com amargura.
            -Como se conheceram? – perguntei.
            -Um dia apareceu e atirou pedrinhas na minha janela. – respondeu e ficou mudo por um momento. – Aquele navio deve ter levado ele de volta.
                                                    
De todas as histórias esta é a que mais me marca, sempre que viajo por este meu passado. É sempre nessa cidade de memórias que faço parada e me deito a ouvir o que conta o pequeno Tomás. Há algo que inflama a certeza de que é aí que se encontra o início de toda a trilha que vem a seguir, quando três dos meus EU se tocam. Talvez.
O lugar onde foi enterrado o baú continua intacto. Assim permanecerá. Não me arrisco a voltar lá, assim como Cabeça de Balão não voltou. Não me arrisco a confirmar que os adultos estavam certos. 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Sobre a Borda




Os zumbis estão por aí, em todo canto. Cheiro de putrefação vai escoando de rua para rua, de beco para beco. Estou sozinho em meio a essa desolação. Em algum momento da jornada fui abandonado pelos companheiros. Não sei que rumo tomaram. Certo é que estou só. Faz tempo que não vejo ninguém.
Não tenho mais medo. A última vez que o senti foi quando cai de cara no chão, a boca acertando em cheio o asfalto e o gosto de poeira e sangue adensando a minha saliva. Naquele momento, sentindo uma fração do meu braço esquerdo ser retirada do seu todo por dentes selvagens, fui tomado do mais insano pavor que jamais me assaltou. Debati todo o meu corpo, odiei e violentei dum jeito que nem lembro a coisa que primeiro me violentou. Foi como escapei. Foi meu último suspiro de medo. E me dá saudade de certo modo.
Agora não o sinto mais. Nem preciso dele. As coisas já não me atacam. Fui mordido e estou me tornando um deles. Não sei exatamente quanto mais falta. Posso apenas sentir os tremores ficando mais intensos e uma febre constante. Meu braço está repugnante. Como tenho nojo dele nesse momento por me lembrar que sou um quase morto. Tampouco entendo o mecanismo do instinto destas criaturas que tão rápido os leva a me ver como seu igual, quando, ainda há pouco, eu era parte da refeição.
Não dói. Não fisicamente. Mas percebo que vou sumindo devagar. Não consigo mais lembrar do rosto dos meus pais. Enquanto caminho por esta rua cheia de lixo e coisas abandonadas, muitos deles se arrastando do meu lado, tento puxar na memória um dia que vivi com minha família. Lembro a situação, mas os rostos estão borrados. Merda! Só reconheço as feições do meu mais velho irmão. Nem entendo como vivi todo esse tempo apático com a distância entre mim e ele.
Tempo. Não me resta muito agora antes que meu fundamento de vida se torne a caça aos meus antigos semelhantes e minha única obsessão seja a carne viva da qual perdi o direito de habitar. E essa vontade de carne viva não seria, talvez, um resto de humanidade preso ali dentro, tentando absurdamente se conectar ao passado? Romantismo risível. É somente decomposição e miséria mesmo. Não é preciso um sentido. Nem mesmo precisa ser injusto. Quem disse que nasci para a felicidade?
Saco! Estou pensando demais. É só que estou agoniado com a proximidade da transformação.
Sendo assim, se meus momentos de humano se esvaem, quero aproveitar esse tempo escasso para concretizar um último ato de homem. Mas o que? Quase não me vem à cabeça uma idéia de atitude humana. Vou me perdendo. Rio de desespero. Espere! Que tal uma carta? Sim, uma última declaração. Mas como, se não há quem a leia ou quem a entregue por mim. Minha saliva está pegajosa, é quase um muco. Não importa! Mas... Não consigo achar a palavra.
A carta! Não importa que não seja lida, mas apenas que seja escrita. Ou nem isso. Não tenho caneta por perto e não me aventuro a perder tempo procurando uma. Contudo, ali está uma folha de papel. É o bastante. Ilustra bem minha necessidade. É o último conforto ao qual me agarro, meu legado como alguém que se sabe quase no fim.
Minhas mãos tremem. Há um dos zumbis atrás de mim. Que será que compõe a matéria de sua consciência? Aaaahhhhh!! Isso foi um gemido. Minha respiração está acelerada. Pra quem devo idealizar essa carta, minha última carta? E o que deve conter? Um desabafo? Um insulto? Rio. Ora, isso também faz parte do que é ser humano, acho. Uma confissão de amor. É o que merece ser. Mas dedicada a quem? Minhas entranhas se contorcem, é como imagino que se produz essa dor. Quero urrar, mas não me permito esquecer ainda a carta. Para quem enviar? Para um amor do passado. É justo. Para um do qual ainda me lembre. Qual?
Vejo um rosto nas memórias moles. É bonito, e é pra ele que ofertarei esta carta. Sim. Para este que é a única figura que consigo atrair diante da palavra amor neste meu epílogo. É a minha idéia final de amor enquanto alcanço a decomposição. Que nem sei se realmente amei. Então nesse meu suspiro agonizante paro, o papel cai de minhas mãos, e percebo...  
Já não lembro mais o que é amor.

A última viagem

                                                 

Lembro de deitar no gramado da minha amiga e olhar para o céu, me aproximar dele, tudo ganhou relevo, e tinha um som próprio, uma cor única. A vida pulsava de fora para dentro, eu podia a sentir, era tão sólida que eu quase podia a tocar. Por um instante, era como se eu não fosse um , eu era tudo, eu fazia parte do todo. 
Cada momento era a hora de uma ação dentro de um ciclo do infinito. Sempre havia uma coisa maior, maior e maior.
Me vi poeira, pó, cosmos. 
Eu voei e levitei e fui tragada pelo “pra sempre” numa roda de euforismo. 


E tudo que era cosmo, virou caos, e a ação virou inércia e a roda parou , e a música silenciou, as cores morreram e a dança se aquietou.
Aos poucos senti minha vida ser sugada, minuto a minuto deixava de participar do ciclo de ação.
Eu encolhi e afoguei no meu sangue, tudo ficou negro. 

Agora éramos eu e o nada.


Para ouvir: The End - The Doors




Para se Impressionar: Animação EndTrip