quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Tão só.

O seu dia começa lá pelas onze, pois até então esteve na cama, não dormindo, mas dando asas a uma preguiça que despertara com ele do sono, avaliando as pequenas sombras no teto, considerando as mais fúteis questões como quem se deixa levar numa correnteza voraz, mesmo que mansa. Às onze se levanta, cuida das obrigações higiênicas, arruma os lençóis, recolhe o material de sobre a mesa, indo agasalhá-lo no armarinho com cheiro de velharia e vai para a cozinha providenciar o café, munido duma tela de Dapinarc que restituiria à parede da sala. O almoço ainda está longe de despontar no seu horizonte. Por volta das três que a fome vai outra vez se mobilizar, passear e protestar no seu estômago. Às onze, quase às doze, bebe uma xícara de café demoradamente, comendo pão com sardinha de lata, molho de limão sua preferida,  e lendo o jornal do dia, que pegara furtivamente para não atrair atenções vizinhas, e a revista satírica, forçando para decorar os melhores comentários sarcásticos – há de rir com eles, nas horas isoladas da noite ou pensa que irá.
                Após a primeira refeição, vai para a sala, liga a TV por meio minuto, para confirmar que, como no dia anterior, nada de útil é transmitido e vai para a sua pequena biblioteca. É quando pensa ouvir o primeiro sinal delas na casa. O bater de uma porta que não aconteceu. O pescoço se volta para baixo, e ele contorce amargamente os lábios, sabe que descer todos os degraus já conquistados só pode dar-lhe um cansaço que de nada vale. Continua subindo. Os livros lá estão, esperando-o. Passa ali umas boas horas, avaliando, acariciando algumas das maravilhas da sua coleção, os dedos nadando pelas páginas amarelas de umas obras russas – sob o seu tato o frio, a vida dura, os dramas, a solidão do homem. De repente, as peças do tabuleiro de xadrez, reservadas ao lado da estante de história, chamam-no para uma partida. As brancas desde sempre tiveram de se virar para defender seu rei sozinhas.  Ele levanta, depois de titubear, e, sozinho, joga. É então que surge um alterego que pode garantir um duelo, que não tenha a mácula da manipulação dos resultados. Porém, antes que sua rainha possa cruzar furiosa o tabuleiro, sua mão enfraquece, o interesse some por entre as prateleiras, debaixo das ondas de poeira, e a fome chacoalha e derruba as peças.
                É hora do almoço. Ovos, duas linguiças de frango, alface, tomates e arroz. Ele mastiga lento, já vão indo as quatro horas. Quase deixa de sentir o sabor da refeição, já preocupado com a louça para lavar. Uns dias antes, guardara um amuleto de outros tempos num dos armários da parede, e ainda agora se esforça por imaginar como é que ele desapareceu de lá. Enquanto come, passam as sombras pelo vitrô fechado da janela, muito movimentada a sua rua, gente cheia de calores sentando nas calçadas a toda hora. Nunca que ele sairia pra fora num dia desses. Cuidara para espantar as árvores da sua calçada, sem sombras, sem folgados.
                As linguiças talvez não estejam mais interessantes, ali está um outro livro onde sempre se consola. Cheio de figuras, interessante, sua enciclopédia de batalhas menos famosas da história tem as páginas envergadas pelas chicotadas frequentes dos seus dedos. Vira uma página, o papel rígido geme, com ele, o soalho do quarto de cima também range. Seus olhos se levantam, seu rosto cansado demonstra a sua alma cansada de resistência. Ele prefere não se alterar, se afobar, ainda são pequenas essas novas intromissões. Contudo, logo será noite. A louça fica para uma outra hora, coisa inédita. Ele vai para a pia, enquanto as figuras em seu livro se matam umas às outras. Descansa a louça sob a torneira, e apura o raio da audição, pois certamente estão a cochichar abaixo da janela. Sim, dois garotos. Seu lábio cai, pesa o queixo, são o tal Hugo Meleca e aquele fedido do Canhotinho. Pode escutá-los decidindo o momento de atirarem o gato morto para dentro da sua cozinha, não, não a sua, a da sua mãe. Apavorado, ele se lança contra a trava e arregaça as folhas de vidro, para encontrar o vácuo acima da calçada ardente. Do outro lado da rua, a enrugada Matilde o olha, a bomba vacilando na boca, umas crianças descamisadas combinando alguma artimanha lá na esquina, nenhuma delas o Hugo Meleca, nem o Canhotinho.
                Ele isola a visão da rua para fora, arrependido de se entregar, de perder a cautela. Pelo visto, hoje elas chegaram mais cedo, invadindo desordenadamente. Corre para a sala, verifica a porta da frente, se está trancada. No caminho para cima, passa pelo quadro de Viviane Lamozziene e acredita sensato levá-lo com ele para a noite. Arranca-o da parede e entra pelo corredor que vai dar na escada para os quartos, a biblioteca, o escritório e um dos banheiros. Já está a meio caminho quando ouve os passos de uma perseguição vindo engoli-lo pelo corredor, os passos irracionais de uma fuga, os urros de uma mãe selvagem. Sentindo o tropel muito próximo, ele se joga contra a primeira porta a sua direita e se perde no quartinho de entulhos, ofegante, escuro, repleto de relevos. Passam os berros, os tropeções, os tapas cortando o ar. Uma criança gemendo de pânico. De repente retorna o silêncio.
                Minutos depois, passa a cabeça através da brecha vagarosamente, vacilante, as mãos suadas com dificuldades de se apoiar à meia-luz. Escapa, com movimentos macios, firmando-se na parede, ainda atento a qualquer ruído. Nada. Então continua. Sobe as escadas, dessa vez não houve tempo de preparar a limonada, da qual sentirá saudade horas mais tarde. Rapidamente, faz uma parada no quarto, fechas as janelas, revira umas gavetas, sem, contudo, desordenar as suas roupas. Pega o seu caderno no armarinho, olha para a rua em seguida, está vazia. Suado, os pés doendo, as panturrilhas rígidas, ele segue para o escritório. Risadas na sala. Certamente ele pode discernir risadas na sala. Está muito perto da entrada do escritório agora. O cheiro de perfume que escorre dum dos quartos é denso, escorre em camadas para o caminho entre os cômodos. O quadro de Viviane pesa.
                Enfim ele alcança o seu reduto. Aliviado, tranca-se rápido ali. Consegue evitar a discussão de moças que vem crescendo pela escada e as hostis provocações que o perseguem. O quadro vai para o chão, escorado ao lado da escrivaninha, o caderno, para cima da mesa no centro da sala. A cama simples está bem arrumada no cantinho, não fazendo promessa senão de uma noite pouco confortável, de sono interrompido. Ele se senta, meio aliviado, a camisa escura de umidade. De olhos cerrados, tentando saborear a estranha segurança deste seu lugar. Em seguida, a luminária é acesa, a caneta é agarrada, ele tenta escrever. Agora, ele se esforça em desapegar das coisas em volta, para que não perceba a escuridão engolindo o resto do mundo, agarrado ao seu pequeno círculo de luz, adensando sua solidão. Os minutos correm, vão crescendo, tornando-se horas que partem para uma próxima graduação, e nada surge. Mais um pouco e há de fazer o caderno sangrar. Rabiscara muitas frases vazias e as arrancara, nem sabe quantas páginas já se foram. Então repousa, suspenso por uma falta de ideia, de inspiração. O braço recua, de súbito salta em direção ao caderno, para a meio-caminho e recua novamente. Talvez a milésima palavra que se aproxima do precipício, mas não pula.
O som dos tamancos acertando o chão torce-lhe a cabeça em direção ao quarto em frente. Sem solução, a escuridão se estabelece devagar e a casa é delas outra vez. São muitas as vezes em que manteve a respiração estacionada, apreensivo, com medo de que invadissem o pequeno escritório. Nunca acontecera, embora pareça que façam as paredes irem se acercando e o assediando. Ele ignora a sensação, a influência em seus batimentos. Contempla as linhas vazias, fecha o caderno encarando-o como a um companheiro em cujas promessas não pode mais acreditar. Contudo, não se levanta de imediato. Parece temer por o pé para fora da ilha de luz onde sobrevive inseguro ao naufrágio do dia. De repente, escuta o falatório em frente ao escritório, o casal e seus filhos, a menina muito feliz com seu balão. Logo em seguida uma balbúrdia se manifesta no quarto ao lado. Um rapaz furioso destrói os móveis, desgostoso consigo mesmo. A sua amada passou e ele, covarde nada disse. Nesse momento, seus olhos desfalecem sobre a palma da mão, sua estrutura se sacode, tomado duma agonia peculiar, as lágrimas raras tentando reconquistar um domínio há muito perdido.

                Cansado, sufocado pelo vazio tão repleto, ele rejeita o boa-noite não dito, e segue para a cama. Enquanto se levanta com lentidão da cadeira, pensa que agora seria uma boa hora para a companhia oportuna de um gole de limonada. Os movimentos dominam todos os lados da residência. Escadas rangem, vozes gritam, recuam, prometem, choram. Gente indo pra lá e cá. Ele escora a cabeça no travesseiro, suspirando fundo, sentindo-se tão impotente por sua casa arrancada de si. Seu corpo relaxa como pode no colchão magro. A luminária fica acesa com seu lume fraco. Tudo é noite além, e ele amargamente fecha os olhos. Não adianta a vigília. E as piadas da revista satírica, não as lembra mais. Ou talvez só não tenha a energia para rir delas. Ali ele está protegido das trevas com seu lume, e protegido delas, com seu pequeno forte-escritório e seu Viviane Lamozziene. De nada serve a vigília. A casa agora é toda das suas lembranças e das possibilidades não realizadas.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Frustração 

O resultado muito almejado por mim revelou-se de uma forma súbita, golpeando-me violentamente no ego, me deixando atordoado e sem reação.

Quando o resultado revelou sua face hedionda, me mostrei totalmente indefeso e fraquejante em meio a sua presença caustica. 

Como se não bastasse a surpresa desconfortável, ele veio acompanhado, de uma donzela envolvente e silenciosa,  com incrível poder arrebatador, capaz de deixa-lo introspectivo e humilhado por incontáveis dias.

Esta jovem graciosa se chama Frustração, a hospede indesejada que fará de sua mente a sua nova moradia, e deitará ao seu lado todas as noites.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015



Mãe Filha



Ao avistar uma mulher com uma criança nos braços de aproximadamente um ano de idade, o vigilante anônimo não consegue não consegue identificar quem é mãe e quem é a filha.

Talvez a mãe seja a criança, que está sendo carregada por uma geração passada rumo a um futuro, destino no qual estará será incumbida de a levar sua próxima linhagem na estrada do amanha obscuro.

Ou talvez seja a própria mulher a genitora, que com a criança no colo esteja exercendo sua responsabilidade biológica, protegendo sua prole até uma idade segura, e executando protocolos  imposta pela sociedade contemporânea de ser responsável legal por aquele pequeno ser indefeso.

Aos olhos do vigilante anônimo é incerto dizer, pois uma filha se torna mãe e uma mãe se torna progenitora de uma filha em um intervalo tão curto de tempo. Tempo, sentinela oculto, que observa pacientemente, e nos diz pacientemente que o hoje é a mãe de todos os as manhãs.