O seu dia
começa lá pelas onze, pois até então esteve na cama, não dormindo, mas dando
asas a uma preguiça que despertara com ele do sono, avaliando as pequenas
sombras no teto, considerando as mais fúteis questões como quem se deixa levar
numa correnteza voraz, mesmo que mansa. Às onze se levanta, cuida das
obrigações higiênicas, arruma os lençóis, recolhe o material de sobre a mesa,
indo agasalhá-lo no armarinho com cheiro de velharia e vai para a cozinha
providenciar o café, munido duma tela de Dapinarc que restituiria à parede da
sala. O almoço ainda está longe de despontar no seu horizonte. Por volta das
três que a fome vai outra vez se mobilizar, passear e protestar no seu
estômago. Às onze, quase às doze, bebe uma xícara de café demoradamente,
comendo pão com sardinha de lata, molho de limão sua preferida, e lendo o jornal do dia, que pegara
furtivamente para não atrair atenções vizinhas, e a revista satírica, forçando
para decorar os melhores comentários sarcásticos – há de rir com eles, nas
horas isoladas da noite ou pensa que irá.
Após
a primeira refeição, vai para a sala, liga a TV por meio minuto, para confirmar
que, como no dia anterior, nada de útil é transmitido e vai para a sua pequena
biblioteca. É quando pensa ouvir o primeiro sinal delas na casa. O bater de uma
porta que não aconteceu. O pescoço se volta para baixo, e ele contorce
amargamente os lábios, sabe que descer todos os degraus já conquistados só pode
dar-lhe um cansaço que de nada vale. Continua subindo. Os livros lá estão,
esperando-o. Passa ali umas boas horas, avaliando, acariciando algumas das
maravilhas da sua coleção, os dedos nadando pelas páginas amarelas de umas
obras russas – sob o seu tato o frio, a vida dura, os dramas, a solidão do
homem. De repente, as peças do tabuleiro de xadrez, reservadas ao lado da
estante de história, chamam-no para uma partida. As brancas desde sempre tiveram
de se virar para defender seu rei sozinhas. Ele levanta, depois de titubear, e, sozinho,
joga. É então que surge um alterego que pode garantir um duelo, que não tenha a
mácula da manipulação dos resultados. Porém, antes que sua rainha possa cruzar
furiosa o tabuleiro, sua mão enfraquece, o interesse some por entre as
prateleiras, debaixo das ondas de poeira, e a fome chacoalha e derruba as
peças.
É
hora do almoço. Ovos, duas linguiças de frango, alface, tomates e arroz. Ele
mastiga lento, já vão indo as quatro horas. Quase deixa de sentir o sabor da
refeição, já preocupado com a louça para lavar. Uns dias antes, guardara um
amuleto de outros tempos num dos armários da parede, e ainda agora se esforça
por imaginar como é que ele desapareceu de lá. Enquanto come, passam as sombras
pelo vitrô fechado da janela, muito movimentada a sua rua, gente cheia de
calores sentando nas calçadas a toda hora. Nunca que ele sairia pra fora num
dia desses. Cuidara para espantar as árvores da sua calçada, sem sombras, sem folgados.
As
linguiças talvez não estejam mais interessantes, ali está um outro livro onde
sempre se consola. Cheio de figuras, interessante, sua enciclopédia de batalhas
menos famosas da história tem as páginas envergadas pelas chicotadas frequentes
dos seus dedos. Vira uma página, o papel rígido geme, com ele, o soalho do
quarto de cima também range. Seus olhos se levantam, seu rosto cansado
demonstra a sua alma cansada de resistência. Ele prefere não se alterar, se afobar, ainda são pequenas essas
novas intromissões. Contudo, logo será noite. A louça fica para uma outra hora, coisa inédita. Ele vai
para a pia, enquanto as figuras em seu livro se matam umas às outras. Descansa
a louça sob a torneira, e apura o raio da audição, pois certamente estão a
cochichar abaixo da janela. Sim, dois garotos. Seu lábio cai, pesa o queixo,
são o tal Hugo Meleca e aquele fedido do Canhotinho. Pode escutá-los decidindo
o momento de atirarem o gato morto para dentro da sua cozinha, não, não a sua,
a da sua mãe. Apavorado, ele se lança contra a trava e arregaça as folhas de vidro, para encontrar o vácuo acima da calçada ardente. Do outro lado da rua,
a enrugada Matilde o olha, a bomba vacilando na boca, umas crianças
descamisadas combinando alguma artimanha lá na esquina, nenhuma delas o Hugo
Meleca, nem o Canhotinho.
Ele
isola a visão da rua para fora, arrependido de se entregar, de
perder a cautela. Pelo visto, hoje elas chegaram
mais cedo, invadindo desordenadamente. Corre para a sala, verifica a porta da
frente, se está trancada. No caminho para cima, passa pelo quadro de Viviane
Lamozziene e acredita sensato levá-lo com ele para a noite. Arranca-o da parede
e entra pelo corredor que vai dar na escada para os quartos, a biblioteca, o
escritório e um dos banheiros. Já está a meio caminho quando ouve os passos de
uma perseguição vindo engoli-lo pelo corredor, os passos irracionais de uma
fuga, os urros de uma mãe selvagem. Sentindo o tropel muito próximo, ele se
joga contra a primeira porta a sua direita e se perde no quartinho de entulhos,
ofegante, escuro, repleto de relevos. Passam os berros, os tropeções, os tapas
cortando o ar. Uma criança gemendo de pânico. De repente retorna o silêncio.
Minutos depois, passa a cabeça através da brecha vagarosamente, vacilante, as mãos suadas com
dificuldades de se apoiar à meia-luz. Escapa, com movimentos macios,
firmando-se na parede, ainda atento a qualquer ruído. Nada. Então continua.
Sobe as escadas, dessa vez não houve tempo de preparar a limonada, da qual
sentirá saudade horas mais tarde. Rapidamente, faz uma parada no quarto, fechas
as janelas, revira umas gavetas, sem, contudo, desordenar as suas roupas. Pega
o seu caderno no armarinho, olha para a rua em seguida, está vazia. Suado, os
pés doendo, as panturrilhas rígidas, ele segue para o escritório. Risadas na
sala. Certamente ele pode discernir risadas na sala. Está muito perto da
entrada do escritório agora. O cheiro de perfume que escorre dum dos quartos é
denso, escorre em camadas para o caminho entre os cômodos. O quadro de Viviane
pesa.
Enfim
ele alcança o seu reduto. Aliviado, tranca-se rápido ali. Consegue evitar a
discussão de moças que vem crescendo pela escada e as hostis provocações que o
perseguem. O quadro vai para o chão, escorado ao lado da escrivaninha, o
caderno, para cima da mesa no centro da sala. A cama simples está bem arrumada
no cantinho, não fazendo promessa senão de uma noite pouco confortável, de sono
interrompido. Ele se senta, meio aliviado, a camisa escura de umidade. De olhos cerrados, tentando saborear a estranha segurança deste seu lugar. Em seguida, a luminária é acesa, a caneta é agarrada, ele tenta escrever.
Agora, ele se esforça em desapegar das coisas em volta, para que não perceba a
escuridão engolindo o resto do mundo, agarrado ao seu pequeno círculo de luz, adensando sua solidão. Os
minutos correm, vão crescendo, tornando-se horas que partem para uma próxima
graduação, e nada surge. Mais um pouco e há de fazer o caderno sangrar. Rabiscara
muitas frases vazias e as arrancara, nem sabe quantas páginas já se foram.
Então repousa, suspenso por uma falta de ideia, de inspiração. O braço recua,
de súbito salta em direção ao caderno, para a meio-caminho e recua novamente.
Talvez a milésima palavra que se aproxima do precipício, mas não pula.
O som dos tamancos
acertando o chão torce-lhe a cabeça em direção ao quarto em frente. Sem solução, a escuridão
se estabelece devagar e a casa é delas outra vez. São muitas as vezes em que manteve a
respiração estacionada, apreensivo, com medo de que invadissem o pequeno
escritório. Nunca acontecera, embora pareça que façam as paredes irem se
acercando e o assediando. Ele ignora a sensação, a influência em seus batimentos. Contempla as linhas vazias, fecha o
caderno encarando-o como a um companheiro em cujas promessas não pode mais
acreditar. Contudo, não se levanta de imediato. Parece temer por o pé para fora
da ilha de luz onde sobrevive inseguro ao naufrágio do dia. De repente, escuta
o falatório em frente ao escritório, o casal e seus filhos, a menina muito
feliz com seu balão. Logo em seguida uma balbúrdia se manifesta no quarto ao lado.
Um rapaz furioso destrói os móveis, desgostoso consigo mesmo. A sua amada
passou e ele, covarde nada disse. Nesse momento, seus olhos desfalecem sobre a
palma da mão, sua estrutura se sacode, tomado duma agonia peculiar, as lágrimas raras tentando reconquistar um domínio há muito perdido.
Cansado,
sufocado pelo vazio tão repleto, ele rejeita o boa-noite não dito, e segue para a cama.
Enquanto se levanta com lentidão da cadeira, pensa que agora seria uma boa hora
para a companhia oportuna de um gole de limonada. Os movimentos dominam
todos os lados da residência. Escadas rangem, vozes gritam, recuam, prometem,
choram. Gente indo pra lá e cá. Ele escora a cabeça no travesseiro, suspirando
fundo, sentindo-se tão impotente por sua casa arrancada de si. Seu corpo relaxa como pode no colchão magro. A luminária fica acesa com
seu lume fraco. Tudo é noite além, e ele amargamente fecha os olhos. Não
adianta a vigília. E as piadas da revista satírica, não as lembra mais. Ou
talvez só não tenha a energia para rir delas. Ali ele está protegido das trevas
com seu lume, e protegido delas, com seu pequeno forte-escritório e seu Viviane
Lamozziene. De nada serve a vigília. A casa agora é toda das suas lembranças e
das possibilidades não realizadas.