Tive minha dose de distâncias nessa vida. Fui descuidado em
minhas caminhadas, mormente com meu corpo. Tanto que, aos 25 anos, já falo com
um sotaque de velho matreiro e carrego no rosto rugas pérfidas que me mentem a
idade. Mas não me envergonho da minha velhice estranha e precoce. Se assim
cheguei, aqui, às minhas duas décadas e meia, foi porque vivi o bastante e com
orgulhosa entrega. E nessa corrida louca conheci de tudo que poderia querer
conhecer: pessoas admiráveis, lugares divinos e histórias, as mais variadas
histórias.
Algumas delas passei para o papel, e, de todas as minhas
recordações e pequenos artefatos conquistados, as histórias sempre me parecem
mais valiosas que todo o resto. E uma delas, a que primeiro escrevi no
caderninho surrado, e que, vez ou outra, gosto de reler, é a que mais me
encanta. Um pequeno garoto, um pequeno amargurado que, desde muito cedo,
aprendeu a não acreditar nas amizades, certa ocasião, contou a mim o seu drama.
Amuado e desconfiado dos meus sorrisos, Tomás confessou que
tivera um grande amigo há um tempo. Brincaram muito e todos os dias. Tinham
gostos parecidos. Aonde um ia, lá estava o outro. Eram mesmo malucos da mesma
forma. E o quer que assustasse a um deles, pouco afetava o outro. Completavam-se
e se protegiam. Aprendiam e ensinavam-se.
-Que nome
tinha? – perguntei.
-Nunca
disse. Pra ficar fácil, chamei ele de Cabeça de Balão. Subia nas árvores e
dizia que tava procurando pra ver se achava o navio que tinha abandonado ele na
cidade.
Lembrou de tudo que faziam juntos, todas as grandes
aventuras que fantasiavam, e evocou um fatídico dia em que sentaram sobre a
ponte velha da cidade e imaginaram como seriam adultos corajosos e charmosos.
Não o foram, ao menos não juntos. As pessoas grandes logo se
fartaram da amizade que tinham. Os pais, irmãos e outros, já não podiam
suportar uma criancice que ia para os lados da loucura. Berravam com Tomás e o
proibiam de abrir a boca. Ameaçaram mesmo agredi-lo. Homens eruditos chegaram a
palestrar-lhe um sermão sobre o verdadeiro amigo da humanidade. Houve também os
que não deixaram de ver a coisa sempre com humor, mas que nada demonstravam por
respeito à família e assim colaboravam com a repressão às necessidades de
Tomás.
-Pare de
falar desse pequeno demônio! – berrou alguém no escuro de um pesadelo.
Chegou, então, o dia em que Cabeça de Balão
apareceu e arrastou Tomás até um canto silencioso da ponte velha. Ali, mostrou
ao amigo um pequeno baú e disse:
-Fui de
noite à sua casa e peguei de você um pouco do que também peguei de mim: um
pouco da nossa amizade. Vamos enterrar aqui, num lugar seguro, pra que fique
bem protegida dos adultos. Assim, ninguém vai destruir de vez aquilo que faz a
gente brincar junto.
Enterraram o pequeno baú, ainda que Tomás não entendesse
direito o que fazia. Por fim, sentaram-se mais uma vez sobre a ponte e algo no
sumir do sol no horizonte tirou deles toda a vontade de falar.
Foi assim que passaram seu último dia de amizade. Cabisbaixo,
a voz a falhar, Tomás lembrou que não teve mais qualquer notícia ou visão de
Cabeça de Balão. Quase como um fantasma, em muitos dos dias que se seguiram,
podia-se vê-lo parado sobre a ponte velha, ou sobre algum ponto alto sobre os
telhados das casas a observar. Até que
se cansou.
-Nossa
amizade ficou enterrada lá – disse com amargura.
-Como se
conheceram? – perguntei.
-Um dia
apareceu e atirou pedrinhas na minha janela. – respondeu e ficou mudo por um
momento. – Aquele navio deve ter levado ele de volta.
De todas as histórias esta é a que mais me marca, sempre que
viajo por este meu passado. É sempre nessa cidade de memórias que faço parada e
me deito a ouvir o que conta o pequeno Tomás. Há algo que inflama a certeza de
que é aí que se encontra o início de toda a trilha que vem a seguir, quando
três dos meus EU se tocam. Talvez.
O
lugar onde foi enterrado o baú continua intacto. Assim permanecerá. Não me
arrisco a voltar lá, assim como Cabeça de Balão não voltou. Não me arrisco a
confirmar que os adultos estavam certos.
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