sábado, 23 de agosto de 2014

Quem Estava Ali?




Tive minha dose de distâncias nessa vida. Fui descuidado em minhas caminhadas, mormente com meu corpo. Tanto que, aos 25 anos, já falo com um sotaque de velho matreiro e carrego no rosto rugas pérfidas que me mentem a idade. Mas não me envergonho da minha velhice estranha e precoce. Se assim cheguei, aqui, às minhas duas décadas e meia, foi porque vivi o bastante e com orgulhosa entrega. E nessa corrida louca conheci de tudo que poderia querer conhecer: pessoas admiráveis, lugares divinos e histórias, as mais variadas histórias.
Algumas delas passei para o papel, e, de todas as minhas recordações e pequenos artefatos conquistados, as histórias sempre me parecem mais valiosas que todo o resto. E uma delas, a que primeiro escrevi no caderninho surrado, e que, vez ou outra, gosto de reler, é a que mais me encanta. Um pequeno garoto, um pequeno amargurado que, desde muito cedo, aprendeu a não acreditar nas amizades, certa ocasião, contou a mim o seu drama.
Amuado e desconfiado dos meus sorrisos, Tomás confessou que tivera um grande amigo há um tempo. Brincaram muito e todos os dias. Tinham gostos parecidos. Aonde um ia, lá estava o outro. Eram mesmo malucos da mesma forma. E o quer que assustasse a um deles, pouco afetava o outro. Completavam-se e se protegiam. Aprendiam e ensinavam-se.
            -Que nome tinha? – perguntei.
            -Nunca disse. Pra ficar fácil, chamei ele de Cabeça de Balão. Subia nas árvores e dizia que tava procurando pra ver se achava o navio que tinha abandonado ele na cidade.
Lembrou de tudo que faziam juntos, todas as grandes aventuras que fantasiavam, e evocou um fatídico dia em que sentaram sobre a ponte velha da cidade e imaginaram como seriam adultos corajosos e charmosos.  
Não o foram, ao menos não juntos. As pessoas grandes logo se fartaram da amizade que tinham. Os pais, irmãos e outros, já não podiam suportar uma criancice que ia para os lados da loucura. Berravam com Tomás e o proibiam de abrir a boca. Ameaçaram mesmo agredi-lo. Homens eruditos chegaram a palestrar-lhe um sermão sobre o verdadeiro amigo da humanidade. Houve também os que não deixaram de ver a coisa sempre com humor, mas que nada demonstravam por respeito à família e assim colaboravam com a repressão às necessidades de Tomás.
            -Pare de falar desse pequeno demônio! – berrou alguém no escuro de um pesadelo.
Chegou, então, o dia em que Cabeça de Balão apareceu e arrastou Tomás até um canto silencioso da ponte velha. Ali, mostrou ao amigo um pequeno baú e disse:
            -Fui de noite à sua casa e peguei de você um pouco do que também peguei de mim: um pouco da nossa amizade. Vamos enterrar aqui, num lugar seguro, pra que fique bem protegida dos adultos. Assim, ninguém vai destruir de vez aquilo que faz a gente brincar junto.
Enterraram o pequeno baú, ainda que Tomás não entendesse direito o que fazia. Por fim, sentaram-se mais uma vez sobre a ponte e algo no sumir do sol no horizonte tirou deles toda a vontade de falar.
Foi assim que passaram seu último dia de amizade. Cabisbaixo, a voz a falhar, Tomás lembrou que não teve mais qualquer notícia ou visão de Cabeça de Balão. Quase como um fantasma, em muitos dos dias que se seguiram, podia-se vê-lo parado sobre a ponte velha, ou sobre algum ponto alto sobre os telhados das casas a observar.  Até que se cansou.
            -Nossa amizade ficou enterrada lá – disse com amargura.
            -Como se conheceram? – perguntei.
            -Um dia apareceu e atirou pedrinhas na minha janela. – respondeu e ficou mudo por um momento. – Aquele navio deve ter levado ele de volta.
                                                    
De todas as histórias esta é a que mais me marca, sempre que viajo por este meu passado. É sempre nessa cidade de memórias que faço parada e me deito a ouvir o que conta o pequeno Tomás. Há algo que inflama a certeza de que é aí que se encontra o início de toda a trilha que vem a seguir, quando três dos meus EU se tocam. Talvez.
O lugar onde foi enterrado o baú continua intacto. Assim permanecerá. Não me arrisco a voltar lá, assim como Cabeça de Balão não voltou. Não me arrisco a confirmar que os adultos estavam certos. 

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