domingo, 30 de novembro de 2014

O Dia de Adelaide




É manhã, uma manhã cuja existência fugaz já soma duas horas. O sol de cor esverdeada observa a tudo, lançando sempre ondas de raios multicoloridos pela extensão do espaço, espetáculo não feito menos maravilhoso pela intromissão freqüente das nuvens cor de algodão-doce.
         Adelaide acorda com o dia. Ela se levanta tão logo se retira o cobertor da noite. É a hora em que a névoa com cheiro de chocolate rasteja de volta a sua toca. Cantarolante, ela se banha no córrego atrás de sua casinha, veste as flores do seu vestido e penteia o cabelo frente ao espelho. Na cozinha, há uma cesta de frutas que ela sabe não serem para a sua alimentação, recolhe-as com cesta e tudo e vai cuidar de seu cultivo. Abandona as frutas num cantinho protegido e dedica um tempo para sua pequena horta. A terra escura é fofa e lhe cobre as mãos com uma frieza gostosa. De vez em quando, interrompe-se para tirar o suor da testa ou ver as irradiações multicoloridas do sol.
         Dali, Adelaide segue para o seu pomar, guiando-se por esta picada feita de folhas amareladas, um tapete dourado cheio de majestade. É neste momento que lhe aparece seu fiel amigo, Pulgão, este cachorro com asas e pelo azul. Adelaide abraça-o, ele sacudindo o rabo e lambendo:
         -Bom dia, meu Pulgão roliço!
         -Sim, minha flor, o dia é bom, mas de roliço eu só tenho a inteligência.
         Adelaide abre o sorriso e sacode as orelhas de Pulgão. Ao mesmo tempo, o vento vem recolhendo uma dose de folhas amarelas, que vai levando para onde for, tornando mais encantadora sua passagem. A menina e o cachorro, então, seguem adiante. Chegam ao pomar. Debaixo das muitas árvores, enquanto Pulgão corre atrás das borboletas, Adelaide arranja as frutas da cesta sobre a membrana de folhas caídas e espera. Aparece o primeiro passarinho, acompanhado de outro na distância duns segundos. Logo, os galhos estão rodeados deles, todos prontos para a refeição. Porém, quando insinuam um ataque, Adelaide os impede com gesto autoritário.
         -Primeiro a minha canção.
         Um dos passarinhos se empertiga e diz.
         -Muito bem, meus senhores, façamos como pede nossa colega.
         O que se segue é a mais admirável execução vocal que jamais se ouviu. Pássaros tenores provocando estremecimentos até mesmo nas copas das árvores. Magnífico! Adelaide cansa as palmas das mãos, chocando-as com velocidade, extasiada por dia após dia comprovar a realidade daquela façanha. E não tendo mais o que exigir dos senhores pássaros, permite que ataquem o montículo de frutas. Frutas estas nada comuns. Ao primeiro investir dos bicos pode-se notar fluir do interior das maçãs, peras e goiabas uma substância líquida que não era outra coisa senão chocolate derretido. Maravilhas que só crescem no quintal de Adelaide. Deliciada ainda mais, a menina deixa que se revirem e se lambuzem, e vai seguindo à procura de pulgão, quando se lembra de ter esquecido na horta o rastelo para limpar o pomar.
         -Que besta que sou.
         Aproveita para devolver a cesta e retorna a sua casinha. Naquele instante, as melodias começam a ecoar por toda parte. Parecem vir da boca de várias ninfas, ou qualquer criatura de alma suave e cheia de carinho. Seus tons densos vem se esgueirando e sutilmente levando o espírito pela mão para planar não se sabe onde. Uma fantasia extasiante que há de fluir por todo o dia. Não demora Adelaide está cruzando as cercas de sua horta, deixa ali mesmo a cesta de frutas, pega o rastelo e se vai saindo. Acontece de surpreender a carroça do velho Siel passando em frente do seu quintal neste momento, por sobre a estradinha que vai sumir lá no meio das colinas de limão. É bem limpinha, apesar dos retalhos de grama solta que redemoinham por aí; tem um verniz luminoso e vem sempre abarrotada. Não é diferente desta vez: as pessoas quase que se cospem para fora, feitas em rolha.
         O velho Siel vê a garota e interrompe o mover das rodas, as avestruzes que puxam o veículo não se impedem de pensar, algumas de dizer: “Já não era sem tempo!”. Adelaide se aproxima, faceira, cumprimentando ao velho e aos passageiros entediados e aborrecidos. Siel lhe pergunta:
         -Então, guria, você vem hoje?
         Adelaide ouve a pergunta novamente com o mesmo humor das outras ocasiões.
         -Não. Eu fico.
         -Você é que sabe – Dá um puxão nas rédeas, fazendo esganiçar as aves pescoçudas. Antes que se mova, porém, Adelaide, pergunta:
         -Para onde vai levando essa tantarada de gente todo dia?
         -Ué, é fácil... para onde elas sabem que tem de ir – Acena o chapéu e prossegue a viagem.
         Risonha, Adelaide firma o rastelo no ombro, sabendo que ele volta no dia seguinte, e retorna ao pomar. Daí em diante, passa rápido o seu dia. Limpa o pomar, amontoando as folhas em montes de ouro outonal, Pulgão rodeando-a com latidos, algumas vezes se atirando sobre as pilhas de folhas, esparramando tudo, levando a menina às gargalhadas, enquanto corre atrás do cão com o rastelo em riste, ziguezagueando entre as árvores. Findo este dever, ambos voltam para casa. Adelaide come uma fatia de pão, Pulgão outra, e limpa os cômodos. Lava a casa e corre para alimentar sua criação de bolhudos. Eles amam comer a lama que para Adelaide não serve nem pra lixo. Depois, poda as pequenas árvores que dão uma rala sombra à entrada do casebre.
         Um pouco suja, Adelaide se senta, escorada a uma parede, o cão ao seu lado. Algumas das tarefas do dia ficam melhores para depois do almoço. Agora ela há de tomar um banho e forrar o estômago. Resolvido isto, Pulgão lhe conta uma piada. Ambos riem muito.
         -Muito boa. Ele há de gostar dessa.
         Pulgão deixa pender a cabeça para a direita, sem entender.
         -Ele quem?
         -Ele? – Questiona Adelaide.
         -Você acaba de dizer que alguém há de gostar dessa piada.
         -Disse nada, seu tonto.
         Torce a orelha do cachorro, puxando uma de suas asas e corre para o banho. É agradável e rápido o seu almoço, mormente porque Pulgão não se impede de exigir a sua parte. Acontece algo de curioso ao lavar o prato, numa pequena tina no canto da cozinha. Ao tê-lo úmido nas mãos, estica-o como que a entregá-lo a alguém. Percebe então o que está fazendo, olha intrigada para o braço estendido para o vazio, estranha a própria desatenção sem fundamento, estranha ainda mais a sensação de ausência no ar, e, por fim, recolhe o braço, secando o prato.
         Ainda intrigada com seu gesto, vai para a beira do lago e fica ronronando musicas que vão surgindo na sua cabeça. O céu está púrpura esta tarde. Com o cão ao seu lado, aprecia as bolhas gigantes que vão flutuando, algumas mais distantes do solo, outras quase a coçar a terra. Tem em volta do tornozelo uma fita cor-de-rosa, a qual fica torcendo com os dedos desatentos enquanto conta as bolhas. Deita-se na grama, os olhos leves parecendo que vão flutuar para junto daquelas, de repente mais pesados, até que se apagam. Tudo é silêncio no sonho. De repente o trovão de voz, chacoalhando tudo, ecoa pelo céu. Adelaide acorda num salto. Os mesmo olhos arregalados pela surpresa. “Hoje eles vêm mais cedo”, pensou.
         Soa a tempestade outra vez. É uma pergunta feita por uma montanha, ecoando por toda parte, quase fazendo parecer que o céu vai se partir sob seu peso. Não há resposta. Chama a voz apoteótica de novo, o ar repleto delas, gigantes, onipresentes, ensurdecedoras. Umas ligadas às outras. A menina olha para todos os lados, agarra Pulgão pelas orelhas:
         -Vem, vira-lata, que os deuses hoje estão com pressa.
Corre pela extensão do campo à sua frente, o vento assobiando no verde, desviando das torres de caramelo, vermelho e branco, que decoravam o caminho, os muitos cavalos a correrem junto com eles, e vem parar debaixo de uma alta árvore de pétalas rosas e prateadas, as suas flores a saírem voando para a imensidão do espaço continuamente. Para Adelaide, uma mensageira enviando sinais ao céu dos deuses. Esbaforida, ela se ajoelha ante o altar tosco de madeira, cheio de pequenas esculturas tortas de argila, confeccionadas pelas suas mãos, o céu e tudo a chacoalhar ainda, e entoa a oração de agradecimento e adoração que inventara para arrefecer o troar dos muitos deuses que assomavam à abóbada cósmica, com seu colóquio devastador, em horas variadas. Havia também uma outra cesta de frutas que oferecia às estatuetas feiosas e as belas mensagens que prendia ao talo das flores da grande árvore na esperança de que fossem parar diretamente nas mãos desejadas. Perdoassem os deuses a sua caligrafia nunca corrigida e relevassem o seu sacrifício para escalar tamanha obra da natureza, que de tão alta quase lhe permitia entregar as mensagens pessoalmente.
Mas o mundo ainda treme. Aflita, Adelaide ora com maior intensidade, quase a berrar em pensamentos, tão centrada no seu mantra que não pode discernir as palavras construídas pelo desmoronar, para não simplesmente usar o termo “falar”, dos deuses. Assim, Adelaide ora, ora, ora, ora com tanta força, que não pode perceber quando soa pelo céu um novo trovão articulado. E o mundo se sacode em risadas e, em seguida, emudece. É o fim. Demora para que Adelaide se lembre de verificar. Ao apurar os ouvidos, muito depois de se perder nas ondas do seu espírito, nota o silêncio, mais notável que qualquer outro que exista, e se deixa cair sobre a grama. Pulgão se joga sobre o peito dela, lambendo-a, e mesmo as estatuazinhas parecem mais eretas e firmes. Perpassa uma brisa pela copa pululante, uma curiosa brisa que muito diz à garota. Satisfeita, ela goza o carinho da vegetação em sua pele, rindo muito essa permanência das coisas em seus lugares. Lá está o céu ainda de pé. Ela se levanta novamente. O mundo a salvo traz consigo a permanência das obrigações. Que não reclamem do amanhã aqueles que se empenham em mantê-lo contínuo. Chamando seu cão, ela corre para os trabalhos da tarde.
Sua primeira missão é consertar o pequeno suporte onde pendura um violino e seu arco na cozinha. Ela não sabe tocá-lo, achou nas suas coisas um dia, mas imagina sempre algum jovem de talento a manuseá-lo e tem a certeza de que iria amar com certeza o som saído daquelas cordas. Sabe que ama desde já. Dá jeito no suporte, deita o violino sobre ele e aprecia o seu trabalho. É rápida a contemplação. Já está a preparar-se para o próximo trabalho. Pega no quarto o cavalete, uma tela improvisada e sai. Não dá atenção, mas ao passar pelo portão grita “volto mais tarde” para a casa vazia.
Cruza com seus passos jovens uma pequena elevação de terreno, indo se encontrar com uma curva do córrego, metros à frente, diante da qual se ergue uma bela casinha branca, com ladrilhos vermelhos, móveis de madeira e tudo o mais. A única freqüência ali é a do pó. Na porta, uma placa diz: “Ainda volto pra cá quando puder”. E por conta deste aviso, Adelaide teve a ideia, dias atrás, quando explorava a sua terra e descobriu esta casa, de dar ao seu perdido dono uma ajuda com a manutenção. Levou os utensílios anteriormente, e agora veio dar cabo do serviço. Varre, lava, esfrega, martela, encera, serra. Sobe lá, desce cá. Vai enxotando a poeira para uma outra vizinhança. Chega longe a tarde e está tudo terminado. Tomara que o morador não se demore. Por último, ainda suja, ela agarra o cavalete, a tela improvisada, tira dos bolsos as tintas e pincéis e começa a pintar. Faz com a fluidez que só os hábitos podem ostentar. Lá está uma linha qualquer, esta que logo vai enraizando, sem demora se transforma e chega no ápice de uma maravilha de pintura. Tudo feito tão rápido e destramente. Então ela se vira para o cão que observa obediente e pergunta:
-O que achou?
-Que ta querendo espantar de vez o morador daqui.
Ela tenta acertar-lhe com o pé. Erra de propósito. Vai até a sala e pendura o quadro num prego já preparado. O sol está baixo, quase sumido nas profundezas do horizonte. Adelaide observa o alto da hora, pelo céu que vai perdendo da cor luminosa do cristal, e de repente lhe toma o rosto uma nota sombria, a mais sutil caída das pestanas para sombrear o olhar. Pulgão percebe, mas não sabe bem se os olhos míopes o traem, fica, portanto, sem se manifestar. Ela deixa a casa, com os apetrechos lá, e vai para o córrego se banhar. O cão move-se num passo menor, ficando para trás. Abandona a água nua, limpa, o vestido de flores repentinamente é mato, flor e verdade.
De roupa nova, ela sai pelo portão, perfumada, para um último compromisso. Move-se para além das colinas que cercam seu dia e seus afazeres, está nublada, só sente-se assim, a brisa bolinando-a em seus passos. A cabeça comporta a brisa loira dos cabelos. Pulgão aparece por detrás duma torre de caramelo, mascando um punhado de grama de goma.
-Não, Pulgão. Eu tenho de ficar só agora.
O rabo, as orelhas e as asas abaixam. O chiado fino escapa pela boca do cão e ele some por onde veio. Amanhã ele há de retornar. Não importa muito agora. Adelaide caminha um pouco mais, tem nos pés a sapatilha preta preferida, e, após agarrar a um monte mais inclinado até o alto, vislumbra lá embaixo no terreno côncavo no alto duma colina verde a árvore do balanço. Corre os metros restantes, para que o pôr-do-sol não se escape do seu momento perfeito. Eis o tronco, a copa, o balanço. Ri-se rápido, meio amargamente. Senta e se balança um pouco, a verdade até enjoar do movimento, porquanto se larga, às vezes, tolamente, esperando um impulso que não vem. Depois, vai e senta de encontro ao caule robusto, é quando o deitar do sol vai chegando ao seu clímax. Os esfumaços de nuvem são de todas as cores, tudo é quieto demais, o que acontece é grandioso além para que não se suspenda toda respiração e ação. Lá estão os elefantes amarelos do outro lado do lago a contemplar da mesma maneira. Não demora e começa a chuva de estrelas. Quem sabe até apareça esta noite uma dessas que não se mexem e brilham estáticas.
É neste momento, apoiada à árvore, como se deitada sobre o colo cuidadoso de alguém, que Adelaide começa a chorar. Saltam-lhe as lágrimas, essas gotas de sangue prata, que os olhos sangram em nome do coração. O sol vai sumindo e Adelaide chora. Chora porque está triste, por que comoção desconhecida, e não pode mudar isso.
É tarde da noite e a menina está mais uma vez em seus aposentos. Não quer conversa com as paredes, com as horas, nem nada. Vai para o quartinho, despe-se a meio caminho, que o pôr-do-sol não lhe machuque tanto amanhã. Aproxima-se da cama, onde dois travesseiros esperam as cabeças cansadas que hão de confortar. Adelaide deita do seu lado esquerdo e dorme quase instantaneamente. Inconsciente, vagando pelos vapores do sono, não nota que se vira para o outro lado, para o travesseiro vazio, e o agarra para, beijando-o e sorrindo.
-Amo-te.

Do lado de fora, a mãe de Adelaide, com as faces mais exaustas, observa sua filha desacordada, o caixão de pele, ossos e sangue que se tornou a sua criança. Segurando a mão da filha, tem os quadris incomodados pelas horas seguidas que esteve ali sentada. Como foi que aconteceu da sua princesa devorar a si mesma de tal jeito? A Adelaide ali deitada está ligada a parelhos e é bem mais velha que a Adelaide juvenil de dentro, tão pálida, tão sem a magia que outrora lhe brota dos membros compulsivamente. Na cadeira à frente da sua cama, um rapaz esgotado dorme. Esteve ali por horas. Seus olhos observando a constância do sono de sua mulher, tão consumido da esperança de vê-la outra vez a acordar. Traz no pulso uma fita cor-de-rosa. Tudo que deseja é ouvir sua amada dizer outra vez que o ama. Inconsciente, não imagina que ela o diz toda noite. E que vive a precisar que o digam também a ela.
Não sonha Adelaide que aos seus deuses basta que diga um EU TE AMO capaz de cruzar a carne insone para que cessem de sacudir o cosmo.

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