segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O Definitivo Começo - Cidade de Bruma




O cemitério era uma terra esquecida, sem horas, momentos, circunstâncias, donde brotavam espigas de pedra, rígidas como que em adoração ao banho do sol que as vinha lavar diariamente. Sepulturas que se compadeciam umas das outras visto que, abandonadas, não tinham senão a sombra das lápides vizinhas para lhes fazer vigília, e, raras vezes, os pingos que caíam de nuvens passageiras a lhes acariciar a superfície num rápido lamento. Ademais, era de tal modo vazio, que se podia conjecturar, em nossa população, um supersticioso respeito pelo sono dos mortos, não menos considerada uma cautelosa conduta de não lhes perturbar sob a ameaça imaginada de alguma vingança terrível.

Não de todo livre da presença humana desperta, porém, havia ali um velho vigia que podia ser encontrado, quase todo o tempo, frente ao portão do cemitério, escorado numa cadeira escorada a uma coluna borrada de cal aguada, deveras despreocupado com o que pudesse acontecer de remoto dentro dos limites estagnados que, por mister, devia resguardar. Logo, foi por este velho indolente, de bochechas liquefeitas, impossibilitado de sorrir pelo desmoronar dos alicerces de sua face, que passamos rumo ao centro do campo-santo, em busca do túmulo de Jonas. Lançou-nos um olhar de incômodo como quem desejasse se interpor em nosso caminho, contudo, ainda que o tencionasse com coragem, havia nele muito menos disposição em nos seguir para além dos muros que barravam aos mortos sua nefasta influência sobre nossa cidade. Assim, nada fez que não nos observar indo para longe e sumindo ao dobrarmos uma esquina.

Com passadas ligeiras sobre o terreno pedregoso que protestava num alarido crocante, concedíamos ao lugar um aparato de vida que com capricho e veemência se manifestava, como se o próprio retornar à vida dos hóspedes fizesse tremer às bases da terra, anunciando com seu eco numa trombeta de pedregulhos a imponente marcha dos zumbis a todo o mundo, e procurávamos chegar a nosso destino o mais rápido possível, não de todo conscientes da raridade do episódio que protagonizávamos ao emprestar àquele ambiente movimento, som, respiração, ação, mas unicamente centrados em nosso fim. Porém, quando alcançamos o funesto sepulcro de nosso conhecido, o que buscáramos com tamanha sanha, estacamos, de repente tocados, tomados, por um fato que até então consideráramos como se fosse uma verdade já superada, uma lembrança de outros, ou uma lenda dessas com a qual se acostuma como natural, mas que quando confrontada nos abala por inteiro e nos arranca do solo estável no qual aprendemos a nos equilibrar.

Sob a tutela ácida, metálica do sol, encaramos a estrutura definitiva que envolvia Jonas duma maneira tal, numa tal solidez, que, a mim, pareceu ser a decomposição do seu cadáver um espetáculo ainda mais terrificante que o de qualquer outro, a negação perpétua do seu futuro, uma abominação insuportável contra todo o curso de nossas esperanças. Não obstante nos surpreendesse, chegamos mais perto. A consciência teve então de admitir, frente à lápide e sua tosca gravura: Jonas estava mesmo morto. Não que duvidássemos, mas por algum motivo deixáramos de pesar a ideia com a real densidade que lhe competia. Ajoelhei e observei; ao meu lado, a respiração abafada de Santiago se fazia ouvir, sua máscara camuflando a teia deformada de expressões que trairiam seus sentimentos. Nada falávamos, e nosso silêncio era quase capaz de toldar a luz do dia, tantas eram as sensações que entremeavam sua constituição. Creio que estivéssemos perturbados, machucados em nossa vaidade. Se nos incomodava tanto encarar a resoluta sepultura, assim acontecia porque sentíamos que o desfecho se produzira contrário às nossas necessidades. A trama se encerrara de modo tão brusco que todos os atos ensaiados e adiados com confiança foram decepados e despejados sobre um fim abismal, perdidos pra sempre no fosso escuro das ações não realizadas, sem pudéssemos agarrá-los e prometer uma resolução alternativa. 

De repente, a voz de Santiago escapou pelos frisos da máscara:

- Eu o odiava. E agora que está morto, percebo que o odeio ainda mais.

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