É manhã, uma manhã cuja existência fugaz já soma duas
horas. O sol de cor esverdeada observa a tudo, lançando sempre ondas de raios
multicoloridos pela extensão do espaço, espetáculo não feito menos maravilhoso
pela intromissão freqüente das nuvens cor de algodão-doce.
Adelaide
acorda com o dia. Ela se levanta tão logo se retira o cobertor da noite. É a
hora em que a névoa com cheiro de chocolate rasteja de volta a sua toca.
Cantarolante, ela se banha no córrego atrás de sua casinha, veste as flores do
seu vestido e penteia o cabelo frente ao espelho. Na cozinha, há uma cesta de
frutas que ela sabe não serem para a sua alimentação, recolhe-as com cesta e
tudo e vai cuidar de seu cultivo. Abandona as frutas num cantinho protegido e
dedica um tempo para sua pequena horta. A terra escura é fofa e lhe cobre as
mãos com uma frieza gostosa. De vez em quando, interrompe-se para tirar o suor
da testa ou ver as irradiações multicoloridas do sol.
Dali,
Adelaide segue para o seu pomar, guiando-se por esta picada feita de folhas
amareladas, um tapete dourado cheio de majestade. É neste momento que lhe
aparece seu fiel amigo, Pulgão, este cachorro com asas e pelo azul. Adelaide
abraça-o, ele sacudindo o rabo e lambendo:
-Bom dia, meu
Pulgão roliço!
-Sim, minha
flor, o dia é bom, mas de roliço eu só tenho a inteligência.
Adelaide abre
o sorriso e sacode as orelhas de Pulgão. Ao mesmo tempo, o vento vem recolhendo
uma dose de folhas amarelas, que vai levando para onde for, tornando mais
encantadora sua passagem. A menina e o cachorro, então, seguem adiante. Chegam
ao pomar. Debaixo das muitas árvores, enquanto Pulgão corre atrás das
borboletas, Adelaide arranja as frutas da cesta sobre a membrana de folhas
caídas e espera. Aparece o primeiro passarinho, acompanhado de outro na
distância duns segundos. Logo, os galhos estão rodeados deles, todos prontos
para a refeição. Porém, quando insinuam um ataque, Adelaide os impede com gesto
autoritário.
-Primeiro a
minha canção.
Um dos
passarinhos se empertiga e diz.
-Muito bem,
meus senhores, façamos como pede nossa colega.
O que se
segue é a mais admirável execução vocal que jamais se ouviu. Pássaros tenores
provocando estremecimentos até mesmo nas copas das árvores. Magnífico! Adelaide
cansa as palmas das mãos, chocando-as com velocidade, extasiada por dia após
dia comprovar a realidade daquela façanha. E não tendo mais o que exigir dos
senhores pássaros, permite que ataquem o montículo de frutas. Frutas estas nada
comuns. Ao primeiro investir dos bicos pode-se notar fluir do interior das
maçãs, peras e goiabas uma substância líquida que não era outra coisa senão
chocolate derretido. Maravilhas que só crescem no quintal de Adelaide. Deliciada
ainda mais, a menina deixa que se revirem e se lambuzem, e vai seguindo à
procura de pulgão, quando se lembra de ter esquecido na horta o rastelo para
limpar o pomar.
-Que besta
que sou.
Aproveita
para devolver a cesta e retorna a sua casinha. Naquele instante, as melodias
começam a ecoar por toda parte. Parecem vir da boca de várias ninfas, ou
qualquer criatura de alma suave e cheia de carinho. Seus tons densos vem se
esgueirando e sutilmente levando o espírito pela mão para planar não se sabe
onde. Uma fantasia extasiante que há de fluir por todo o dia. Não demora
Adelaide está cruzando as cercas de sua horta, deixa ali mesmo a cesta de
frutas, pega o rastelo e se vai saindo. Acontece de surpreender a carroça do
velho Siel passando em frente do seu quintal neste momento, por sobre a
estradinha que vai sumir lá no meio das colinas de limão. É bem limpinha,
apesar dos retalhos de grama solta que redemoinham por aí; tem um verniz
luminoso e vem sempre abarrotada. Não é diferente desta vez: as pessoas quase
que se cospem para fora, feitas em rolha.
O velho Siel
vê a garota e interrompe o mover das rodas, as avestruzes que puxam o veículo
não se impedem de pensar, algumas de dizer: “Já não era sem tempo!”. Adelaide
se aproxima, faceira, cumprimentando ao velho e aos passageiros entediados e
aborrecidos. Siel lhe pergunta:
-Então,
guria, você vem hoje?
Adelaide ouve
a pergunta novamente com o mesmo humor das outras ocasiões.
-Não. Eu
fico.
-Você é que
sabe – Dá um puxão nas rédeas, fazendo esganiçar as aves pescoçudas. Antes que
se mova, porém, Adelaide, pergunta:
-Para onde
vai levando essa tantarada de gente todo dia?
-Ué, é
fácil... para onde elas sabem que tem de ir – Acena o chapéu e prossegue a
viagem.
Risonha,
Adelaide firma o rastelo no ombro, sabendo que ele volta no dia seguinte, e
retorna ao pomar. Daí em diante, passa rápido o seu dia. Limpa o pomar,
amontoando as folhas em montes de ouro outonal, Pulgão rodeando-a com latidos,
algumas vezes se atirando sobre as pilhas de folhas, esparramando tudo, levando
a menina às gargalhadas, enquanto corre atrás do cão com o rastelo em riste,
ziguezagueando entre as árvores. Findo este dever, ambos voltam para casa.
Adelaide come uma fatia de pão, Pulgão outra, e limpa os cômodos. Lava a casa e
corre para alimentar sua criação de bolhudos. Eles amam comer a lama que para
Adelaide não serve nem pra lixo. Depois, poda as pequenas árvores que dão uma
rala sombra à entrada do casebre.
Um pouco
suja, Adelaide se senta, escorada a uma parede, o cão ao seu lado. Algumas das
tarefas do dia ficam melhores para depois do almoço. Agora ela há de tomar um
banho e forrar o estômago. Resolvido isto, Pulgão lhe conta uma piada. Ambos
riem muito.
-Muito boa.
Ele há de gostar dessa.
Pulgão deixa
pender a cabeça para a direita, sem entender.
-Ele quem?
-Ele? –
Questiona Adelaide.
-Você acaba
de dizer que alguém há de gostar dessa piada.
-Disse nada,
seu tonto.
Torce a
orelha do cachorro, puxando uma de suas asas e corre para o banho. É agradável
e rápido o seu almoço, mormente porque Pulgão não se impede de exigir a sua
parte. Acontece algo de curioso ao lavar o prato, numa pequena tina no canto da
cozinha. Ao tê-lo úmido nas mãos, estica-o como que a entregá-lo a alguém.
Percebe então o que está fazendo, olha intrigada para o braço estendido para o
vazio, estranha a própria desatenção sem fundamento, estranha ainda mais a
sensação de ausência no ar, e, por fim, recolhe o braço, secando o prato.
Ainda
intrigada com seu gesto, vai para a beira do lago e fica ronronando musicas que
vão surgindo na sua cabeça. O céu está púrpura esta tarde. Com o cão ao seu
lado, aprecia as bolhas gigantes que vão flutuando, algumas mais distantes do
solo, outras quase a coçar a terra. Tem em volta do tornozelo uma fita
cor-de-rosa, a qual fica torcendo com os dedos desatentos enquanto conta as
bolhas. Deita-se na grama, os olhos leves parecendo que vão flutuar para junto
daquelas, de repente mais pesados, até que se apagam. Tudo é silêncio no sonho.
De repente o trovão de voz, chacoalhando tudo, ecoa pelo céu. Adelaide acorda
num salto. Os mesmo olhos arregalados pela surpresa. “Hoje eles vêm mais cedo”,
pensou.
Soa a
tempestade outra vez. É uma pergunta feita por uma montanha, ecoando por toda
parte, quase fazendo parecer que o céu vai se partir sob seu peso. Não há
resposta. Chama a voz apoteótica de novo, o ar repleto delas, gigantes,
onipresentes, ensurdecedoras. Umas ligadas às outras. A menina olha para todos
os lados, agarra Pulgão pelas orelhas:
-Vem,
vira-lata, que os deuses hoje estão com pressa.
Corre pela extensão do campo à sua
frente, o vento assobiando no verde, desviando das torres de caramelo, vermelho
e branco, que decoravam o caminho, os muitos cavalos a correrem junto com eles,
e vem parar debaixo de uma alta árvore de pétalas rosas e prateadas, as suas
flores a saírem voando para a imensidão do espaço continuamente. Para Adelaide,
uma mensageira enviando sinais ao céu dos deuses. Esbaforida, ela se ajoelha
ante o altar tosco de madeira, cheio de pequenas esculturas tortas de argila,
confeccionadas pelas suas mãos, o céu e tudo a chacoalhar ainda, e entoa a
oração de agradecimento e adoração que inventara para arrefecer o troar dos
muitos deuses que assomavam à abóbada cósmica, com seu colóquio devastador, em
horas variadas. Havia também uma outra cesta de frutas que oferecia às
estatuetas feiosas e as belas mensagens que prendia ao talo das flores da
grande árvore na esperança de que fossem parar diretamente nas mãos desejadas.
Perdoassem os deuses a sua caligrafia nunca corrigida e relevassem o seu
sacrifício para escalar tamanha obra da natureza, que de tão alta quase lhe
permitia entregar as mensagens pessoalmente.
Mas o mundo ainda treme. Aflita,
Adelaide ora com maior intensidade, quase a berrar em pensamentos, tão centrada
no seu mantra que não pode discernir as palavras construídas pelo desmoronar,
para não simplesmente usar o termo “falar”, dos deuses. Assim, Adelaide ora,
ora, ora, ora com tanta força, que não pode perceber quando soa pelo céu um
novo trovão articulado. E o mundo se sacode em risadas e, em seguida, emudece.
É o fim. Demora para que Adelaide se lembre de verificar. Ao apurar os ouvidos,
muito depois de se perder nas ondas do seu espírito, nota o silêncio, mais
notável que qualquer outro que exista, e se deixa cair sobre a grama. Pulgão se
joga sobre o peito dela, lambendo-a, e mesmo as estatuazinhas parecem mais
eretas e firmes. Perpassa uma brisa pela copa pululante, uma curiosa brisa que
muito diz à garota. Satisfeita, ela goza o carinho da vegetação em sua pele,
rindo muito essa permanência das coisas em seus lugares. Lá está o céu ainda de
pé. Ela se levanta novamente. O mundo a salvo traz consigo a permanência das
obrigações. Que não reclamem do amanhã aqueles que se empenham em mantê-lo
contínuo. Chamando seu cão, ela corre para os trabalhos da tarde.
Sua primeira missão é consertar o
pequeno suporte onde pendura um violino e seu arco na cozinha. Ela não sabe
tocá-lo, achou nas suas coisas um dia, mas imagina sempre algum jovem de
talento a manuseá-lo e tem a certeza de que iria amar com certeza o som saído
daquelas cordas. Sabe que ama desde já. Dá jeito no suporte, deita o violino
sobre ele e aprecia o seu trabalho. É rápida a contemplação. Já está a
preparar-se para o próximo trabalho. Pega no quarto o cavalete, uma tela
improvisada e sai. Não dá atenção, mas ao passar pelo portão grita “volto mais
tarde” para a casa vazia.
Cruza com seus passos jovens uma
pequena elevação de terreno, indo se encontrar com uma curva do córrego, metros
à frente, diante da qual se ergue uma bela casinha branca, com ladrilhos
vermelhos, móveis de madeira e tudo o mais. A única freqüência ali é a do pó.
Na porta, uma placa diz: “Ainda volto pra cá quando puder”. E por conta deste
aviso, Adelaide teve a ideia, dias atrás, quando explorava a sua terra e
descobriu esta casa, de dar ao seu perdido dono uma ajuda com a manutenção.
Levou os utensílios anteriormente, e agora veio dar cabo do serviço. Varre,
lava, esfrega, martela, encera, serra. Sobe lá, desce cá. Vai enxotando a
poeira para uma outra vizinhança. Chega longe a tarde e está tudo terminado.
Tomara que o morador não se demore. Por último, ainda suja, ela agarra o
cavalete, a tela improvisada, tira dos bolsos as tintas e pincéis e começa a
pintar. Faz com a fluidez que só os hábitos podem ostentar. Lá está uma linha
qualquer, esta que logo vai enraizando, sem demora se transforma e chega no
ápice de uma maravilha de pintura. Tudo feito tão rápido e destramente. Então
ela se vira para o cão que observa obediente e pergunta:
-O que achou?
-Que ta querendo espantar de vez o
morador daqui.
Ela tenta acertar-lhe com o pé.
Erra de propósito. Vai até a sala e pendura o quadro num prego já preparado. O
sol está baixo, quase sumido nas profundezas do horizonte. Adelaide observa o
alto da hora, pelo céu que vai perdendo da cor luminosa do cristal, e de repente
lhe toma o rosto uma nota sombria, a mais sutil caída das pestanas para
sombrear o olhar. Pulgão percebe, mas não sabe bem se os olhos míopes o traem,
fica, portanto, sem se manifestar. Ela deixa a casa, com os apetrechos lá, e
vai para o córrego se banhar. O cão move-se num passo menor, ficando para trás.
Abandona a água nua, limpa, o vestido de flores repentinamente é mato, flor e
verdade.
De roupa nova, ela sai pelo portão,
perfumada, para um último compromisso. Move-se para além das colinas que cercam
seu dia e seus afazeres, está nublada, só sente-se assim, a brisa bolinando-a
em seus passos. A cabeça comporta a brisa loira dos cabelos. Pulgão aparece por
detrás duma torre de caramelo, mascando um punhado de grama de goma.
-Não, Pulgão. Eu tenho de ficar só
agora.
O rabo, as orelhas e as asas
abaixam. O chiado fino escapa pela boca do cão e ele some por onde veio. Amanhã
ele há de retornar. Não importa muito agora. Adelaide caminha um pouco mais,
tem nos pés a sapatilha preta preferida, e, após agarrar a um monte mais
inclinado até o alto, vislumbra lá embaixo no terreno côncavo no alto duma
colina verde a árvore do balanço. Corre os metros restantes, para que o
pôr-do-sol não se escape do seu momento perfeito. Eis o tronco, a copa, o
balanço. Ri-se rápido, meio amargamente. Senta e se balança um pouco, a verdade
até enjoar do movimento, porquanto se larga, às vezes, tolamente, esperando um
impulso que não vem. Depois, vai e senta de encontro ao caule robusto, é quando
o deitar do sol vai chegando ao seu clímax. Os esfumaços de nuvem são de todas
as cores, tudo é quieto demais, o que acontece é grandioso além para que não se
suspenda toda respiração e ação. Lá estão os elefantes amarelos do outro lado
do lago a contemplar da mesma maneira. Não demora e começa a chuva de estrelas.
Quem sabe até apareça esta noite uma dessas que não se mexem e brilham
estáticas.
É neste momento, apoiada à árvore,
como se deitada sobre o colo cuidadoso de alguém, que Adelaide começa a chorar.
Saltam-lhe as lágrimas, essas gotas de sangue prata, que os olhos sangram em
nome do coração. O sol vai sumindo e Adelaide chora. Chora porque está triste,
por que comoção desconhecida, e não pode mudar isso.
É tarde da noite e a menina está
mais uma vez em seus aposentos. Não quer conversa com as paredes, com as horas,
nem nada. Vai para o quartinho, despe-se a meio caminho, que o pôr-do-sol não
lhe machuque tanto amanhã. Aproxima-se da cama, onde dois travesseiros esperam
as cabeças cansadas que hão de confortar. Adelaide deita do seu lado esquerdo e
dorme quase instantaneamente. Inconsciente, vagando pelos vapores do sono, não
nota que se vira para o outro lado, para o travesseiro vazio, e o agarra para,
beijando-o e sorrindo.
-Amo-te.
Do lado de fora, a mãe de Adelaide,
com as faces mais exaustas, observa sua filha desacordada, o caixão de pele,
ossos e sangue que se tornou a sua criança. Segurando a mão da filha, tem os
quadris incomodados pelas horas seguidas que esteve ali sentada. Como foi que
aconteceu da sua princesa devorar a si mesma de tal jeito? A Adelaide ali
deitada está ligada a parelhos e é bem mais velha que a Adelaide juvenil de
dentro, tão pálida, tão sem a magia que outrora lhe brota dos membros
compulsivamente. Na cadeira à frente da sua cama, um rapaz esgotado dorme.
Esteve ali por horas. Seus olhos observando a constância do sono de sua mulher,
tão consumido da esperança de vê-la outra vez a acordar. Traz no pulso uma fita
cor-de-rosa. Tudo que deseja é ouvir sua amada dizer outra vez que o ama. Inconsciente,
não imagina que ela o diz toda noite. E que vive a precisar que o digam também
a ela.
Não
sonha Adelaide que aos seus deuses basta que diga um EU TE AMO capaz de cruzar
a carne insone para que cessem de sacudir o cosmo.