quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O enterro



Samanta tomava coragem, mais uma vez, enquanto atravessava o corredor do colégio estadual. Como escudo, em seus braços carregava alguns livros, um caderno e um pequeno diário. Seus longos cabelos castanhamente ondulados escorriam pelas expressões de seu rosto; o andar tímido a fazia deslizar suavemente pelos corredores a fim de se fazer desapercebida por companhias indesejadas. Normalmente, apesar do corpo presente, tinha um mundo próprio com ares fantásticos. Aos 16 anos, seu corpo não havia conhecido um homem, mas sua mente fazia-se descoberta todas as noites escuras. Para lidar com a solidão, escrevia um pequeno poema, lia um trecho do livro preferido e masturbava-se delicadamente como quem preserva os próprios prazeres. O ultimo poema escrito, inspirado por seu ultimo amor, dizia em uma das estrofes:
 “Nas profusões do amor, encontro confusa as respostas do amor não correspondido, sua pele negra não reflete a luz que emana do meu coração, permanecesses então na escuridão sem saber de meu amor por ti, como o dia que ama a noite, sol e lua jamais se encontram, exceto por uma única oportunidade. Quisera eu ser abençoada por esse eclipse de paixão.”
Ao entrar na sala de aula para a primeira aula, deparou-se com o cavaleiro negro. Parou na porta e ficou analisando todas as nuances de sua pele escura e obstinada na tarefa de não ter pelos. Sua pele clara, branca como luz, equilibrava bem com as sombras dele. Reparou no belo sorriso perfeitamente encaixado. Perdeu-se no meio dos cachos desfeitos dos cabelos rebeldes. Quando ia da concentração ao transe, saiu do sonho num salto, ao ser descoberta pelos olhos castanhoamendoamente atentos. “Fui descoberta”. Baixou a cabeça e andou até seu lugar. Deitou a cabeça sobre os livros no intento de rever a imagem de seu amado, então mais uma vez desperta de seu mundo de fantasias por um toque no braço, ergueu a cabeça e deparou com Daniel, seu príncipe, com um belo sorriso de bom dia.
Era intervalo, e o rendimento da aula anterior foi de dois desenhos, três versos, e uma tentativa de conto fracassado sobre um homem que fora amaldiçoado por uma cigana e perdeu seu passado e futuro, difícil. Sentada embaixo de uma árvore, tentava ler um novo livro, Cidade de Vidro, mas não passava da primeira página. Há dias certa ansiedade começava a incomodá-la; sentia que tal sentimento chegara ao ponto de tornar-se um tumor seriamente perigoso. Um pensamento inquietante tomava a frente na lista de afazeres. Esse dever, que ela deixava para outro dia, seria feito hoje, sem mais adiantamentos, precisava ser. Fechou o livro abruptamente e, num caminhar trotesco, foi em direção ao Daniel; disse todas as palavras em uma só: “precisofalarcomvocêagora.” Visto que ele era compreensivo e despediu-se de seus amigos para tratar de sua amiga.
“Você parece doente, o que lhe aflige?”
Com profundo olhar de piegas saiu da escola e fez sinal para que ele a seguisse. Não muito longe, havia um cemitério, pouco visitado, mas de beleza extraordinária. Sempre que Samanta precisava de inspiração, buscava ali um recanto silencioso. Rodeado de árvores floridas e frondosas, com lápides cuidadosamente esculpidas e uma linda capela feita de madeira. Samanta procurou um lugar para sentar. “É aqui que os amantes se encontram para matar coisas: saudades, desejos, medos... Apesar da funesta tristeza, este em especial me traz paz, por permitir que não apenas os entes queridos sejam enterrados mas também sentimentos.” Virou o corpo para Daniel e, com os lábios tremendo, disse: “Sei de sua condição, sei que ama outra e sei também que estou apaixonada por você. Contar isso aqui é enterrar tal amor. E agora que sabe posso seguir em frente e esquecer tudo isso.” Sem nem esperar resposta caminhou até o portão como quem fugia de algum fantasma. “Espere Samanta, não pode vir aqui me dizer essas palavras e esperar que eu ignore tal declaração. Sabe que sou de outra e prometi meu coração. Mas em nome da amizade, que não deixa de ser amor, proponho a você um beijo. Vamos ver o que sentimos.” Quando Samanta ia se aproximar, Daniel a deteve. “Vamos a minha casa, não há o que enterrar hoje.”
O caminho pela rua foi silencioso, o ar era tão denso que logo eles flutuariam. O Apartamento não era longe, dava tempo de voltar até o fim da aula. As escadas do prédio eram infinitas assim como o silêncio que perdurou até que abriu-se a porta da casa. “Olá”disse uma voz feminina para Samanta. Certa de que deveria ser a mãe, tremulamente beijou seu rosto, nada encontrou para dizer. “Nós viemos buscar uns livros.” Salvou Daniel, que gritava do quarto para a mãe enquanto tirava as botas de couro marrom. Fez sinal para que ela entrasse.
 Timidamente esperou o fechar da porta, o silencio ainda mais profundo incomodava era quebrado apenas pelo tilintitar das coisas e os rugidos pelo caminhar no chão de madeira, cada som a fazia ter um breve susto, como quem esperava a hora de ser abatida. Sabia, era o eclipse.
 Sem dizer qualquer palavra Daniel gentilmente acariciou seu cabelo, observou-a finalmente, percebeu a beleza escondida por trás da carapaça de seriedade, era fato que tal moça pura e intocada lhe dava certo desejo, um pequeno fetiche se escondia por trás da intenção em traze-la em casa, entendeu: um beijo apenas salpicaria seu paladar e tinha fome. Passou as costas da mão docemente nas bochechas macias da moça, era como se estivesse no escuro, usava as mãos para descobrir quem era a formosa menina moça. Seu olhar ficou morteiro, sua boca foi se abrindo e lá foi pousar nos lábios delicados de Samanta.
A respiração ficou ofegante, e o quarto ficou mais escuro, as mãos e as peles foram explorando os cantos. Neste dia de noite, Samanta não preservou o prazer, entregou-se, deixou-se enegrecer, misturar-se. Foi no intimo e buscou ali o ultimo fio de vida que parecia restar. Escureceu, e o fôlego acabou, e as mãos cansaram, e o corpo estremeceu, só restavam agora sangue e suor.
O eclipse terminara, deixando nem mesmo a sombra da escuridão, Samanta agora via-se refletida no rosto de Daniel e então ali algo mudou.

Samantha voltou para casa, não conseguia pensar em mais nada. Caminhou em silencio. Bateu a porta da sala, a voz na televisão na sala, dizia : “Hoje, pela manhã, aconteceu um fenômeno chamado de eclipse solar, que é quando a lua fica na frente do sol. O próximo acontecerá daqui a dez anos...” 

E então entendeu o que mudou.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Ensaio






Prestes a subir a plataforma e com o coração nas mãos, apoiou-se fortemente ao corrimão como se faltassem forças, as pernas meio tremulas. Pisou no primeiro degrau e pensou no motivo que o levava a fazer aquilo, viu então a primeira lágrima cair e molhar o concreto do próximo degrau, assistiu-a desaparecer. Subiu vagarosamente como se experimentasse a sensação da ansiedade e como aquilo fazia parte mal, parte alívio. Não queria deixar tudo ir com tanta pressa, queria que fluísse. Reviu mentalmente as cenas preferidas, como no dia em que reencontrou seu cachorro perdido, na chuva, felicidade sincera, ver a devoção que seu animal tinha para consigo, mesmo sabendo-se que tinha abandonado-o dias antes numa rodovia qualquer da cidade, experimentou o perdão inconsciente. Outras duas lágrimas rolaram pelo rosto e foram parar no cimento que tudo absorveu mais uma vez. Como chibatadas ardentes lembrava de mais cenas felizes, não para fazer-se desistir, mas para continuar. Lembrou da primeira vez em que fez amor, e da primeira sensação de orgasmo, sentido o corpo esmaecer e cair lentamente quase que flutuando num mar de flores e ficar assim, por um tempo, lembrou de um rosto conhecido e como acariciou sua pele, seu rosto, seus lábios e como tornou a beijar, lentamente. Mais uma vez sentiu o cimento frio do próximo degrau e outras lágrimas caírem de saudade. Lembrou de um dia voltar para casa a pé, depois do carro ter estragado,  começar a chover finamente, olhou para cima e viu que ainda fazia sol, deixou a água cair pelo corpo como se quisesse que a água do sol o limpasse. Lembrou da vida, da comida, dos amores e dos vícios. Então tudo pareceu-lhe constante, triste e interminavelmente tedioso, como um castigo eterno na conquista de uma suposta alegria, felicidade e promessa jamais cumprida. Não queria achar a terra prometida, ela era uma mentira, sabia agora. Finalmente chegou ao topo, viu um horizonte imerso em casas e prédios cobrindo o pôr do sol cinzento, abaixou o rosto e viu os pés nus mais uma vez, viu as mãos, andou mais uns passos na plataforma e olhou o horizonte, tão feio.
Virou de costas para tudo aquilo, andou de ré até que seus calcanhares estivessem livres do chão, apenas com as pontas dos pés firmes à plataforma, abriu os braços, olhou para cima numa esperança de talvez desistir, e por ironia sentiu um vento bater contra ele, era o sinal para ir. Era chegada a hora da partida. Acabou, fim. Abriu os braços deixando o peito aberto como se o vento contra ele o tivesse atingindo fatalmente, fechou os olhos pela ultima vez. Soltou o corpo.


Sentiu então a água tocar-lhe, prendeu a respiração e deixou-se afundar e contra sua vontade foi lançando a superfície novamente. Quando rompeu o espelho d’água, o ar entrou em seus pulmões fortemente  foi como se visse o sopro de Deus. Nadou até a borda e sentou. Disse, “para viver é preciso morrer”, levantou e foi embora sem olhar para trás. Hoje era o dia de seu aniversário.

domingo, 14 de junho de 2015

Remorso, Palavras... Fim!



          Crianças! Éramos somente crianças. 
       Ele se mantinha iluminado, no centro do redemoinho de trevas que era o seu quarto, pelo lume deprimente e amarelado de uma vela sebosa, cujos filetes derretidos, em descendência pelo seu corpo rugoso, assemelhavam-se às raízes de um caule em avançada decomposição. Assim preferia, mesmo que, com leve gesto, pudesse acender a prestativa lâmpada adormecida sobre sua cabeça, pois, agarrado ao ato da pequena chama, sendo o mais negrume, sentia-se refugiado dos ataques do próprio pensamento.
       Havia dias que o sono vinha lhe traindo, entregando-o quase que totalmente indefeso à horas insones, obsedantes de remorso e ansiedade. Traição que os momentos de leitura, ritmados pelo martelar convulso dos pés, ao flanar da madrugada, ou os comprimidos, já não podiam remediar. Cada cômodo, ou ação, em que procurou se esconder, surgiu-lhe como o cadafalso, no qual as imagens lhe atingiam, freneticamente, como cutelos lançados por sua memória acusadora.
       Só então, depois de muito penar, tiritando na noite, entre goles sôfregos de café, certo de que as atrações notívagas não foram feitas para si, e após dias, cuja rotina se resumiu a círculos paranoicos pela casa, ele encontrou seu bunker num reduto ameno de luz bordejado de denso breu, no qual, não inteiramente imune, pôde pensar com menos desespero. Por que isso? Éramos apenas crianças.
       E ali, iluminado pela tênue vibração da vela, foi assaltado por uma ideia de redenção, muito frágil, em verdade, deveras infante, todavia, o pouco que restara ao cativo que de tudo tentou para se livrar do ajoujo. Tomou papel e caneta e, ainda que trêmulo, como estou trêmulo, começou a traçar, bracejando em ondas de aflição, o encontro fatal com aquela mãe de cabelos negros, ondulantes, apaixonantes para os olhos da infância, que nunca soubera o destino do seu pequeno filho, à qual vira chorar muitas vezes, detrás de janelas de ângulos pensados para a privacidade, mudo - porém, não mais -, e lhe contou como naquela tarde, em um dia pálido de calor, nos dias em que o circo andava pela cidade, ele, com mais alguns amigos, enfiara seu menino num trem, puro sadismo infantil, e o viram partir com a locomotiva, desfigurado de pavor e impotência, incapaz de saltar sumindo na primeira curva para nunca mais reaparecer.
    Narrou desequilibradamente, traduzindo o delírio por meio das letras tortas. A complacência da mulher, os cabelos apaixonantes, reconhecendo o fim da sua criança, sem a violência que ele imaginara. Pareceu-lhe fácil e o perdão podia ser sentido varando a maciça escuridão para o galardoar com o alívio da confissão. Contudo, nesse instante, sua mão, como que tomada de vida própria, vacilou, arrancou subitamente e começou a rabiscar-lhe a página contra sua vontade, para o horror dos seus olhos dilatados.
        Assombrado, viu surgirem no papel maldições, lacerando com peso a superfície da folha, transformando em brasas os seus músculos. Não conseguia se interromper. Em, seguida com a mesma absurda facticidade, braços alvos, coleantes, surgiram diante de si, através da distorção produzida pelo calor da vela. Depois, uma cabeça, acompanhada de tenso tronco feminino saltando de entre as linhas. Foi o que bastou para lhe fazer cair a boca, espavorida, confrontando aquela face de mãe, antes tão enfeitiçante, ultrajada pelo ódio.
         Como que desolado, ensaiou por os lábios hirtos a gaguejar umas palavras, embora não tenha tido a oportunidade de seguir, pois as mãos etéreas dispararam e lhe abraçaram a garganta, comprimindo-lhe com uma força e vontade demoníaca de destruir. Uma paralisia a o dominar sobrenaturalmente, ele gritou, a cadeira cedendo atrás de si, e desabou sem vida. Nisso, a caneta escapou de sua mão, cruzando o lânguido círculo de claridade e emudeceu sob a treva. 
       

sexta-feira, 5 de junho de 2015

O Pôr do Sonho



O céu cor de cereja não tivera em outras épocas, quando o mundo ainda padecia das epidemias de coração arrebatado, o poder de atrair olhares como agora. Era o fim da tarde, e caminhávamos lentamente um ao lado do outro rumo àquela ladeira atapetada de grama ainda verde, onde se podia ver melhor o por do sol. Vencedor, o Faulkner pesava na mão, tive de soltá-lo, minha resistência tendo falhado em toda sua teimosia. Um Bukowski seria mais gentil para o punho, contudo, não me entregaria à tentação de tão precário benefício. O Hesse já havia ficado para trás, enquanto o sol, cada vez mais adiante. E somente o García Marquez resistia na mão do amigo.
As solas de nossos sapatos já deviam ter cruzado todas as procissões possíveis, iam cada vez mais finas, e nossos pés desenvolviam uma visão própria, palmeando o solo com frequente e tamanha intimidade. Melancolicamente, compulsivamente, seguíamos, não parando nem para ceder a nossas ânsias físicas, como se só nos restasse deixá-las para trás com passos insistentes para nos tornarmos filhos completos do novo mundo.
Por toda parte, os carros abandonados seguiam a canção das ruas silenciosas e aguardavam sem ansiedade, à moda de fiéis prostrados, que as luzes mortas dos semáforos ressuscitassem e decidissem novamente o rumo de sua existência. Nossa ambição, porém, era outra, e os ignorávamos, feito ignorávamos que as janelas tinham olhos por trás das pálpebras de tecido das cortinas, e julgamentos covardes e murmurantes corriam pelos corredores. Havendo um belo sol a nos abandonar, um tão belo lago de chamas ondulantes que definharíamos de bom grado, tal qual Narciso, a admirá-lo, não morressem primeiro os nossos olhos ao seu reflexo fatal, a consciência de sua partida nos deixava cheios de sede de gotas de arrebol. Sede antiga, que os tumultos da vida perdida não nos permitiam mitigar.
Ultrapassando pedregulhos e entulhos, tínhamos as portas escancaradas de edifícios a nos sorrir como bocas preventivas de cavernas que encerravam segredos impudicos e selvagens, assomando ao crepitar crocante dos fragmentos dos prédios sucateados sob nossos passos, e enquanto seguíamos para a ladeira verde, alternávamos nossa direção, desviando dos vários sacos de lixo e de seu conteúdo que vazava como vísceras de corpos inertes. Ainda veríamos pouco antes de nossa íngreme parada, para consolidar a interação com nossa nova realidade, uma senhora que caminhava com pés pesados, trajada de camisola, a mão ia tateando vagamente o ar a sua volta, perturbadoramente, e podia-se ouvir suas frases carinhosas para o estranho invisível mesmo quando já havia desaparecido atrás de um grande furgão.
Nessa altura, percebi, as vitrinas começavam a ondular, assim como meus companheiros pareciam ir se dissolvendo. Falei com cada um deles, e suas palavras iam emolduradas, ora vinham etéreas e sumiam num galope mais veloz que nossa sanha de ver o pôr do sol. As nuvens iam qual vapor atrasado na direção do horizonte, tão apressadas estavam para ocupar seu lugar no espetáculo, enquanto sentia um estranho solavanco a me sugar pelo centro do umbigo, quase que tirando meus pés do chão. Então, em meio a tantas e repentinas sensações, cruzáramos com um miserável doido. Ele tinha a cabeça apoiada num poste até nos ver e levantar os olhos inundados, num prorromper de esperança como nem uma criança abandonada poderia expressar. Moveu-se atabalhoadamente, subjugando a presunção das pernas tortas, e nos disse um choroso “oi”. Passamos por ele sem responder. Já não éramos mais os mesmos, rígidos pela sede. Somente podíamos ouvir o seu berrar infantil em busca da nossa resposta, a ausente resposta que tanto o feria, sendo que não demorou para que ouvíssemos o nauseabundo esmigalhar contra a parede, repetidas vezes. Ainda assim continuamos. E finalmente alcançávamos nosso destino, finalmente beberíamos daquele partir do sol. Sentia-me flutuar com ele pela borda do mundo, minha gravidade nada mais que uma versão infantil da falta de esperança e fé do resto do mundo, dos miseráveis abandonados. Eu estava ali para mais uma gota de alegria. E tudo o mais tremia a minha volta, o sol exultava, meu coração estagnou numa velocidade quase imperceptível, as cores começaram a sumir, e, então, fui tragado...

Abri os olhos no meio de uma tarde assombreada pela barreira da cortina do meu quarto. O ventilador palmilhando em círculos monótonos sobre minha cabeça. Das porções de mundo além daquelas paredes e da lã grosseira do meu cobertor, vinham ruídos que me davam a certeza de que estava muito perto de uma família em atividade. Ao meu lado, meus olhos ainda baços divisavam, havia um pequeno despertador e um copo d’água a acompanhá-lo. As Aventuras de Tom Sawyer, lia-se na borda do pequeno livro caído entre minhas pernas úmidas. A normalidade, pensei. A sede dilacerante por um pôr do sol acolá. Ou aqui? Suspirei, a cabeça apoiada no travesseiro, e fitei o teto, mergulhado na impessoalidade alva do ambiente. Fosse qual fosse o meu real lado, a Tangerina havia produzido efeito. A viagem acontecera ou estava acontecendo. 

domingo, 31 de maio de 2015

A Vela


Essa noite, me faz companhia uma pequena vela que trepida em sua chama flamulante, faz das sombras do copo uma dança com minha imaginação que ganha corpo na parede.

Me vi na labareda que insiste em queimar, tentando saltar do copo que a prende. Te manterei acesa, porém muito escassa e bem segura, onde o calor quase não é percebido.

Não posso deixar que saia do suporte, se encosta em outro, acaba-o por todo. E se acaba, tens tu teu fim.

Preferimos que fique aqui. Mesmo que já não aqueça, dance comigo, ainda que só na nossa sombra.

domingo, 10 de maio de 2015

Matiesse Detrás Da Sebe




      Era já tarde a ultima vez que vi os olhos castanhos de Matiesse. Estávamos debaixo do toldo anulado de um ipê, na noite, florzinhas pingando em nossos ombros. Com cumplicidade ela apertava meu ombro, aquele sorriso de saúde, riqueza, sucesso, construindo em mim a segurança que bastava para que eu não ficasse a vagar os olhos por qualquer trecho de sombra em busca de rastros de perigo. Então sua mão descia e subia, acariciando meu braço e enrugando a manga do meu paletó, e eu nervosamente reagindo, com meus joelhos a convergir um para o outro, feito uma criança em dívidas com as obrigações da natureza. Ela sorrindo para cada um desses meus gestos infantis.
Era o mais ressoante momento de beleza de nossa breve paixão, talvez pela contundente escassez do tempo que tínhamos a realçar a potência da nossa percepção. O último toque, a última vista, quiçá o último beijo depois de uma conveniente pausa, em que nossos olhares se propõem essa última pequena indecência dos apaixonados. Economizávamos palavras, pois era inútil falar. As nuvens, a lua, o céu amargurado, as flores atrás dos arbustos como senhoras pudendas que observam as intrigas por detrás da janelas, todos os elementos sabiam, entregavam e contribuíam para o dramático fim do enredo.
E eu quisera tender o pescoço para o beijo final, mas Matiesse me deteve com a ponta de um dedo impertinente, da natureza das gotas viscosas de chuva que começavam a cair e incomodar, levando-me a crer que mesmo o ambiente já propunha estímulos para nos incitar ao término do nosso drama. Assim se frearam os meus lábios, com Matiesse a pronunciar, muda, o Não. Então badalou em mim a certeza de que não podia ser, que não era mais o certo. Sentia que em alguma parte do meu mundo havia a silhueta de um médico a sussurrar. Eu o via. Sua lapela branca, a lentra em garrancho a difundir a pena capital. “Desfaça! Não é real”, dizia ele, em algum momento do tempo-espaço, com dureza. 
E, prostrando-me, sem revolta, ao conselho, afastei o corpo ainda calejado pela última tendência, minhas costas já bastante úmidas, assim como o seu cabelo, e vislumbrei os olhos castanhos de Matiesse, gaguejando, na última oportunidade que tive de apreciá-los. Em seguida, ela se virou, fazendo o vestido azul rodopiar como um borrão de aquarela, e se distanciou sem tracejar um movimento sequer de adeus. Eu fiquei sob a árvore, o mundo se apagando à minha volta. A escuridão se tornando um só comigo, ambos partes de um mundo que se optou por esquecer. 
Naquela noite, Matiesse chegou em casa e se atirou sobre a cama, agarrando o travesseiro, depositando nele as lágrimas da separação. Depois o atirou contra a parede, abalando o sossego dos seus poucos livros presos na prateleira ao lado, inconformada, desolada por suas limitações; demoraria ainda muito tempo para que entendesse e aceitasse que tinha um transtorno, que em seu desligamento das pessoas e coisas, criava formas e mundos em sua cabeça e tinha o dom de acreditar-lhes. Choraria ainda muito tempo por saber que eu era parte do seu transtorno. Mas, pela manhã, levantaria mais calma; teria sua família para confortá-la. Acabaria entendendo que era preciso por de lado as sebes que ela mesmo cultivava. Logo, teria o doutor, em sua lapela branca, a elogiá-la pelo progresso, e a devastação de sua fantasias já não lhe pareceria tão ruim.
Era a verdade. Foi a minha sina. Desde então segui esquecido numa parte distante da memória que provavelmente resguarda tudo aquilo que não mais teve espaço seja no passado, presente, ou futuro duma pessoa. Quando alguém puder ler isto nas ondas sintonizadas de uma mente sonhadora, que se saiba que esteve registrado nas páginas do diário de um esquecido amor imaginário. 

segunda-feira, 23 de março de 2015

Anatomia do Amor



Entro na sala clara.
Os ossos nas caixas, estão dispostos;
Há um cheiro de formol que vem e paira
Como objetos? Vocês estão em lados opostos.

Poderias comparar a casa da alma
A um simples objeto de uso racional?

Disse-nos no imperativo:Comecem a nomear!
Occipital,lacrimal, lateral, ventricular, maxilar;
Isso,aquilo, coisa;
Apontava freneticamente para a lousa.

Para mim, palavras eram outras;
Para mim, sons eram outros fonemas;
Eu ouvi, causa da morte, seus dilemas,
Eu ouvi, seu endereço, seus amigos,
Eu ouvi, suas crenças e seus medos.

Não deixei de notar
Que mesmo no temor da morte
Riem-se dos que foram
E até pensam: Este não sou eu!

Oh!Pobres casas vazias!
Sei que eram como sou.
Perdoe-me por perturbar suas memórias.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Tão só.

O seu dia começa lá pelas onze, pois até então esteve na cama, não dormindo, mas dando asas a uma preguiça que despertara com ele do sono, avaliando as pequenas sombras no teto, considerando as mais fúteis questões como quem se deixa levar numa correnteza voraz, mesmo que mansa. Às onze se levanta, cuida das obrigações higiênicas, arruma os lençóis, recolhe o material de sobre a mesa, indo agasalhá-lo no armarinho com cheiro de velharia e vai para a cozinha providenciar o café, munido duma tela de Dapinarc que restituiria à parede da sala. O almoço ainda está longe de despontar no seu horizonte. Por volta das três que a fome vai outra vez se mobilizar, passear e protestar no seu estômago. Às onze, quase às doze, bebe uma xícara de café demoradamente, comendo pão com sardinha de lata, molho de limão sua preferida,  e lendo o jornal do dia, que pegara furtivamente para não atrair atenções vizinhas, e a revista satírica, forçando para decorar os melhores comentários sarcásticos – há de rir com eles, nas horas isoladas da noite ou pensa que irá.
                Após a primeira refeição, vai para a sala, liga a TV por meio minuto, para confirmar que, como no dia anterior, nada de útil é transmitido e vai para a sua pequena biblioteca. É quando pensa ouvir o primeiro sinal delas na casa. O bater de uma porta que não aconteceu. O pescoço se volta para baixo, e ele contorce amargamente os lábios, sabe que descer todos os degraus já conquistados só pode dar-lhe um cansaço que de nada vale. Continua subindo. Os livros lá estão, esperando-o. Passa ali umas boas horas, avaliando, acariciando algumas das maravilhas da sua coleção, os dedos nadando pelas páginas amarelas de umas obras russas – sob o seu tato o frio, a vida dura, os dramas, a solidão do homem. De repente, as peças do tabuleiro de xadrez, reservadas ao lado da estante de história, chamam-no para uma partida. As brancas desde sempre tiveram de se virar para defender seu rei sozinhas.  Ele levanta, depois de titubear, e, sozinho, joga. É então que surge um alterego que pode garantir um duelo, que não tenha a mácula da manipulação dos resultados. Porém, antes que sua rainha possa cruzar furiosa o tabuleiro, sua mão enfraquece, o interesse some por entre as prateleiras, debaixo das ondas de poeira, e a fome chacoalha e derruba as peças.
                É hora do almoço. Ovos, duas linguiças de frango, alface, tomates e arroz. Ele mastiga lento, já vão indo as quatro horas. Quase deixa de sentir o sabor da refeição, já preocupado com a louça para lavar. Uns dias antes, guardara um amuleto de outros tempos num dos armários da parede, e ainda agora se esforça por imaginar como é que ele desapareceu de lá. Enquanto come, passam as sombras pelo vitrô fechado da janela, muito movimentada a sua rua, gente cheia de calores sentando nas calçadas a toda hora. Nunca que ele sairia pra fora num dia desses. Cuidara para espantar as árvores da sua calçada, sem sombras, sem folgados.
                As linguiças talvez não estejam mais interessantes, ali está um outro livro onde sempre se consola. Cheio de figuras, interessante, sua enciclopédia de batalhas menos famosas da história tem as páginas envergadas pelas chicotadas frequentes dos seus dedos. Vira uma página, o papel rígido geme, com ele, o soalho do quarto de cima também range. Seus olhos se levantam, seu rosto cansado demonstra a sua alma cansada de resistência. Ele prefere não se alterar, se afobar, ainda são pequenas essas novas intromissões. Contudo, logo será noite. A louça fica para uma outra hora, coisa inédita. Ele vai para a pia, enquanto as figuras em seu livro se matam umas às outras. Descansa a louça sob a torneira, e apura o raio da audição, pois certamente estão a cochichar abaixo da janela. Sim, dois garotos. Seu lábio cai, pesa o queixo, são o tal Hugo Meleca e aquele fedido do Canhotinho. Pode escutá-los decidindo o momento de atirarem o gato morto para dentro da sua cozinha, não, não a sua, a da sua mãe. Apavorado, ele se lança contra a trava e arregaça as folhas de vidro, para encontrar o vácuo acima da calçada ardente. Do outro lado da rua, a enrugada Matilde o olha, a bomba vacilando na boca, umas crianças descamisadas combinando alguma artimanha lá na esquina, nenhuma delas o Hugo Meleca, nem o Canhotinho.
                Ele isola a visão da rua para fora, arrependido de se entregar, de perder a cautela. Pelo visto, hoje elas chegaram mais cedo, invadindo desordenadamente. Corre para a sala, verifica a porta da frente, se está trancada. No caminho para cima, passa pelo quadro de Viviane Lamozziene e acredita sensato levá-lo com ele para a noite. Arranca-o da parede e entra pelo corredor que vai dar na escada para os quartos, a biblioteca, o escritório e um dos banheiros. Já está a meio caminho quando ouve os passos de uma perseguição vindo engoli-lo pelo corredor, os passos irracionais de uma fuga, os urros de uma mãe selvagem. Sentindo o tropel muito próximo, ele se joga contra a primeira porta a sua direita e se perde no quartinho de entulhos, ofegante, escuro, repleto de relevos. Passam os berros, os tropeções, os tapas cortando o ar. Uma criança gemendo de pânico. De repente retorna o silêncio.
                Minutos depois, passa a cabeça através da brecha vagarosamente, vacilante, as mãos suadas com dificuldades de se apoiar à meia-luz. Escapa, com movimentos macios, firmando-se na parede, ainda atento a qualquer ruído. Nada. Então continua. Sobe as escadas, dessa vez não houve tempo de preparar a limonada, da qual sentirá saudade horas mais tarde. Rapidamente, faz uma parada no quarto, fechas as janelas, revira umas gavetas, sem, contudo, desordenar as suas roupas. Pega o seu caderno no armarinho, olha para a rua em seguida, está vazia. Suado, os pés doendo, as panturrilhas rígidas, ele segue para o escritório. Risadas na sala. Certamente ele pode discernir risadas na sala. Está muito perto da entrada do escritório agora. O cheiro de perfume que escorre dum dos quartos é denso, escorre em camadas para o caminho entre os cômodos. O quadro de Viviane pesa.
                Enfim ele alcança o seu reduto. Aliviado, tranca-se rápido ali. Consegue evitar a discussão de moças que vem crescendo pela escada e as hostis provocações que o perseguem. O quadro vai para o chão, escorado ao lado da escrivaninha, o caderno, para cima da mesa no centro da sala. A cama simples está bem arrumada no cantinho, não fazendo promessa senão de uma noite pouco confortável, de sono interrompido. Ele se senta, meio aliviado, a camisa escura de umidade. De olhos cerrados, tentando saborear a estranha segurança deste seu lugar. Em seguida, a luminária é acesa, a caneta é agarrada, ele tenta escrever. Agora, ele se esforça em desapegar das coisas em volta, para que não perceba a escuridão engolindo o resto do mundo, agarrado ao seu pequeno círculo de luz, adensando sua solidão. Os minutos correm, vão crescendo, tornando-se horas que partem para uma próxima graduação, e nada surge. Mais um pouco e há de fazer o caderno sangrar. Rabiscara muitas frases vazias e as arrancara, nem sabe quantas páginas já se foram. Então repousa, suspenso por uma falta de ideia, de inspiração. O braço recua, de súbito salta em direção ao caderno, para a meio-caminho e recua novamente. Talvez a milésima palavra que se aproxima do precipício, mas não pula.
O som dos tamancos acertando o chão torce-lhe a cabeça em direção ao quarto em frente. Sem solução, a escuridão se estabelece devagar e a casa é delas outra vez. São muitas as vezes em que manteve a respiração estacionada, apreensivo, com medo de que invadissem o pequeno escritório. Nunca acontecera, embora pareça que façam as paredes irem se acercando e o assediando. Ele ignora a sensação, a influência em seus batimentos. Contempla as linhas vazias, fecha o caderno encarando-o como a um companheiro em cujas promessas não pode mais acreditar. Contudo, não se levanta de imediato. Parece temer por o pé para fora da ilha de luz onde sobrevive inseguro ao naufrágio do dia. De repente, escuta o falatório em frente ao escritório, o casal e seus filhos, a menina muito feliz com seu balão. Logo em seguida uma balbúrdia se manifesta no quarto ao lado. Um rapaz furioso destrói os móveis, desgostoso consigo mesmo. A sua amada passou e ele, covarde nada disse. Nesse momento, seus olhos desfalecem sobre a palma da mão, sua estrutura se sacode, tomado duma agonia peculiar, as lágrimas raras tentando reconquistar um domínio há muito perdido.

                Cansado, sufocado pelo vazio tão repleto, ele rejeita o boa-noite não dito, e segue para a cama. Enquanto se levanta com lentidão da cadeira, pensa que agora seria uma boa hora para a companhia oportuna de um gole de limonada. Os movimentos dominam todos os lados da residência. Escadas rangem, vozes gritam, recuam, prometem, choram. Gente indo pra lá e cá. Ele escora a cabeça no travesseiro, suspirando fundo, sentindo-se tão impotente por sua casa arrancada de si. Seu corpo relaxa como pode no colchão magro. A luminária fica acesa com seu lume fraco. Tudo é noite além, e ele amargamente fecha os olhos. Não adianta a vigília. E as piadas da revista satírica, não as lembra mais. Ou talvez só não tenha a energia para rir delas. Ali ele está protegido das trevas com seu lume, e protegido delas, com seu pequeno forte-escritório e seu Viviane Lamozziene. De nada serve a vigília. A casa agora é toda das suas lembranças e das possibilidades não realizadas.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Frustração 

O resultado muito almejado por mim revelou-se de uma forma súbita, golpeando-me violentamente no ego, me deixando atordoado e sem reação.

Quando o resultado revelou sua face hedionda, me mostrei totalmente indefeso e fraquejante em meio a sua presença caustica. 

Como se não bastasse a surpresa desconfortável, ele veio acompanhado, de uma donzela envolvente e silenciosa,  com incrível poder arrebatador, capaz de deixa-lo introspectivo e humilhado por incontáveis dias.

Esta jovem graciosa se chama Frustração, a hospede indesejada que fará de sua mente a sua nova moradia, e deitará ao seu lado todas as noites.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015



Mãe Filha



Ao avistar uma mulher com uma criança nos braços de aproximadamente um ano de idade, o vigilante anônimo não consegue não consegue identificar quem é mãe e quem é a filha.

Talvez a mãe seja a criança, que está sendo carregada por uma geração passada rumo a um futuro, destino no qual estará será incumbida de a levar sua próxima linhagem na estrada do amanha obscuro.

Ou talvez seja a própria mulher a genitora, que com a criança no colo esteja exercendo sua responsabilidade biológica, protegendo sua prole até uma idade segura, e executando protocolos  imposta pela sociedade contemporânea de ser responsável legal por aquele pequeno ser indefeso.

Aos olhos do vigilante anônimo é incerto dizer, pois uma filha se torna mãe e uma mãe se torna progenitora de uma filha em um intervalo tão curto de tempo. Tempo, sentinela oculto, que observa pacientemente, e nos diz pacientemente que o hoje é a mãe de todos os as manhãs.