sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Sobre a Borda




Os zumbis estão por aí, em todo canto. Cheiro de putrefação vai escoando de rua para rua, de beco para beco. Estou sozinho em meio a essa desolação. Em algum momento da jornada fui abandonado pelos companheiros. Não sei que rumo tomaram. Certo é que estou só. Faz tempo que não vejo ninguém.
Não tenho mais medo. A última vez que o senti foi quando cai de cara no chão, a boca acertando em cheio o asfalto e o gosto de poeira e sangue adensando a minha saliva. Naquele momento, sentindo uma fração do meu braço esquerdo ser retirada do seu todo por dentes selvagens, fui tomado do mais insano pavor que jamais me assaltou. Debati todo o meu corpo, odiei e violentei dum jeito que nem lembro a coisa que primeiro me violentou. Foi como escapei. Foi meu último suspiro de medo. E me dá saudade de certo modo.
Agora não o sinto mais. Nem preciso dele. As coisas já não me atacam. Fui mordido e estou me tornando um deles. Não sei exatamente quanto mais falta. Posso apenas sentir os tremores ficando mais intensos e uma febre constante. Meu braço está repugnante. Como tenho nojo dele nesse momento por me lembrar que sou um quase morto. Tampouco entendo o mecanismo do instinto destas criaturas que tão rápido os leva a me ver como seu igual, quando, ainda há pouco, eu era parte da refeição.
Não dói. Não fisicamente. Mas percebo que vou sumindo devagar. Não consigo mais lembrar do rosto dos meus pais. Enquanto caminho por esta rua cheia de lixo e coisas abandonadas, muitos deles se arrastando do meu lado, tento puxar na memória um dia que vivi com minha família. Lembro a situação, mas os rostos estão borrados. Merda! Só reconheço as feições do meu mais velho irmão. Nem entendo como vivi todo esse tempo apático com a distância entre mim e ele.
Tempo. Não me resta muito agora antes que meu fundamento de vida se torne a caça aos meus antigos semelhantes e minha única obsessão seja a carne viva da qual perdi o direito de habitar. E essa vontade de carne viva não seria, talvez, um resto de humanidade preso ali dentro, tentando absurdamente se conectar ao passado? Romantismo risível. É somente decomposição e miséria mesmo. Não é preciso um sentido. Nem mesmo precisa ser injusto. Quem disse que nasci para a felicidade?
Saco! Estou pensando demais. É só que estou agoniado com a proximidade da transformação.
Sendo assim, se meus momentos de humano se esvaem, quero aproveitar esse tempo escasso para concretizar um último ato de homem. Mas o que? Quase não me vem à cabeça uma idéia de atitude humana. Vou me perdendo. Rio de desespero. Espere! Que tal uma carta? Sim, uma última declaração. Mas como, se não há quem a leia ou quem a entregue por mim. Minha saliva está pegajosa, é quase um muco. Não importa! Mas... Não consigo achar a palavra.
A carta! Não importa que não seja lida, mas apenas que seja escrita. Ou nem isso. Não tenho caneta por perto e não me aventuro a perder tempo procurando uma. Contudo, ali está uma folha de papel. É o bastante. Ilustra bem minha necessidade. É o último conforto ao qual me agarro, meu legado como alguém que se sabe quase no fim.
Minhas mãos tremem. Há um dos zumbis atrás de mim. Que será que compõe a matéria de sua consciência? Aaaahhhhh!! Isso foi um gemido. Minha respiração está acelerada. Pra quem devo idealizar essa carta, minha última carta? E o que deve conter? Um desabafo? Um insulto? Rio. Ora, isso também faz parte do que é ser humano, acho. Uma confissão de amor. É o que merece ser. Mas dedicada a quem? Minhas entranhas se contorcem, é como imagino que se produz essa dor. Quero urrar, mas não me permito esquecer ainda a carta. Para quem enviar? Para um amor do passado. É justo. Para um do qual ainda me lembre. Qual?
Vejo um rosto nas memórias moles. É bonito, e é pra ele que ofertarei esta carta. Sim. Para este que é a única figura que consigo atrair diante da palavra amor neste meu epílogo. É a minha idéia final de amor enquanto alcanço a decomposição. Que nem sei se realmente amei. Então nesse meu suspiro agonizante paro, o papel cai de minhas mãos, e percebo...  
Já não lembro mais o que é amor.

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