Os zumbis estão por aí, em todo canto. Cheiro de putrefação
vai escoando de rua para rua, de beco para beco. Estou sozinho em meio a essa
desolação. Em algum momento da jornada fui abandonado pelos companheiros. Não
sei que rumo tomaram. Certo é que estou só. Faz tempo que não vejo ninguém.
Não tenho mais medo. A última vez que o senti foi quando cai
de cara no chão, a boca acertando em cheio o asfalto e o gosto de poeira e
sangue adensando a minha saliva. Naquele momento, sentindo uma fração do meu
braço esquerdo ser retirada do seu todo por dentes selvagens, fui tomado do
mais insano pavor que jamais me assaltou. Debati todo o meu corpo, odiei e
violentei dum jeito que nem lembro a coisa que primeiro me violentou. Foi como
escapei. Foi meu último suspiro de medo. E me dá saudade de certo modo.
Agora não o sinto mais. Nem preciso dele. As coisas já não
me atacam. Fui mordido e estou me tornando um deles. Não sei exatamente quanto
mais falta. Posso apenas sentir os tremores ficando mais intensos e uma febre constante.
Meu braço está repugnante. Como tenho nojo dele nesse momento por me lembrar
que sou um quase morto. Tampouco entendo o mecanismo do instinto destas
criaturas que tão rápido os leva a me ver como seu igual, quando, ainda há
pouco, eu era parte da refeição.
Não dói. Não fisicamente. Mas percebo que vou sumindo
devagar. Não consigo mais lembrar do rosto dos meus pais. Enquanto caminho por
esta rua cheia de lixo e coisas abandonadas, muitos deles se arrastando do meu
lado, tento puxar na memória um dia que vivi com minha família. Lembro a
situação, mas os rostos estão borrados. Merda! Só reconheço as feições do meu
mais velho irmão. Nem entendo como vivi todo esse tempo apático com a distância
entre mim e ele.
Tempo. Não me resta muito agora antes que meu fundamento de
vida se torne a caça aos meus antigos semelhantes e minha única obsessão seja a
carne viva da qual perdi o direito de habitar. E essa vontade de carne viva não
seria, talvez, um resto de humanidade preso ali dentro, tentando absurdamente
se conectar ao passado? Romantismo risível. É somente decomposição e miséria
mesmo. Não é preciso um sentido. Nem mesmo precisa ser injusto. Quem disse que
nasci para a felicidade?
Saco! Estou pensando demais. É só que estou agoniado com a
proximidade da transformação.
Sendo assim, se meus momentos de humano se esvaem, quero
aproveitar esse tempo escasso para concretizar um último ato de homem. Mas o
que? Quase não me vem à cabeça uma idéia de atitude humana. Vou me perdendo.
Rio de desespero. Espere! Que tal uma carta? Sim, uma última declaração. Mas
como, se não há quem a leia ou quem a entregue por mim. Minha saliva está
pegajosa, é quase um muco. Não importa! Mas... Não consigo achar a palavra.
A carta! Não importa que não seja lida, mas apenas que seja
escrita. Ou nem isso. Não tenho caneta por perto e não me aventuro a perder
tempo procurando uma. Contudo, ali está uma folha de papel. É o bastante.
Ilustra bem minha necessidade. É o último conforto ao qual me agarro, meu
legado como alguém que se sabe quase no fim.
Minhas mãos tremem. Há um dos zumbis atrás de mim. Que será
que compõe a matéria de sua consciência? Aaaahhhhh!! Isso foi um gemido. Minha
respiração está acelerada. Pra quem devo idealizar essa carta, minha última
carta? E o que deve conter? Um desabafo? Um insulto? Rio. Ora, isso também faz
parte do que é ser humano, acho. Uma confissão de amor. É o que merece ser. Mas
dedicada a quem? Minhas entranhas se contorcem, é como imagino que se produz
essa dor. Quero urrar, mas não me permito esquecer ainda a carta. Para quem
enviar? Para um amor do passado. É justo. Para um do qual ainda me lembre.
Qual?
Vejo um rosto nas memórias moles. É bonito, e é pra ele que
ofertarei esta carta. Sim. Para este que é a única figura que consigo atrair diante
da palavra amor neste meu epílogo. É a minha idéia final de amor enquanto
alcanço a decomposição. Que nem sei se realmente amei. Então nesse meu suspiro
agonizante paro, o papel cai de minhas mãos, e percebo...
Já não lembro mais o que é amor.
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