sábado, 30 de agosto de 2014

Rocha e Rio






Não sendo rocha,
Empoeirada e impaciente partícula
Sobre o chão, de atalaia,
Observando o veio da vida
Correr constante, sem mim,
Submerso no fundo do tempo,
Mudei, queimei, ardi,
Das muitas formas que pude.
Eis que me conheci, e me esqueci.
Participei, dissipado, alienado,
Perdido no mar de verde, no mar de cores
No mar de tudo.
Estranho, profundo e mudo.
Dei espaço aos sentidos. Aprendi.
Outrora sentado, sendo,
De repente, de pé, indo atrás de mim;
Nas veredas da manhã, fugitivo
Do último pedaço de sono,
Balancei nos braços as opiniões
E as ensinei a montar e correr
No lombo da voz.
Um dia minhas,
Fossem então viajar o mundo.
Completo, talvez,
Não sendo pedra,
Fui mais um desgoverno da vontade
E fluí, como sangue, nas veias do tempo.
E circulei, dando forma,
A própria essência do todo.

Vestida de Lua, Ouvindo Estrelas




Tergiversando com estrelas, sou este servo das horas comuns,
Assim chamadas por homens comuns.
Peguei numa conversa uma e outra ideia cadente,
Que, vindas do céu, em palavras de fogo, ateiam em astro
Qualquer coração.
Sentado, manuseando as constelações com meus olhares,
Cutucando colmeias de brilho, logo estará de todo pronta a canção.
Busquei o conhecimento das estrelas para te compor esta canção.
Quem sabe mais do amor, ou da vida?
Certa noite, quando empunhar o mundo a escuridão, vista-se no brilho da lua
E venha ouvir o que me ensinaram as estrelas
Sobre você.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Indecentemente Pesaroso

Helton Padilha era um pé no saco.
   Aquele tipo que você quer evitar; e eu quase sempre conseguia; mas é claro que ele não ganhou sua fama de inconveniente deixando eu me safar com minha desvontade de encontrá-lo. Tampouco ele permitiria que eu, talvez, me afeiçoasse a ele por sua ausência. Eis o que há: algum conhecido nos apresentou, como que para tirar o fardo de sua amizade dos pés e caminhar por aí levemente; e caminhou.
   A coisa sobre os indesejáveis é que eles nunca o são logo de cara. Portanto, posso ou não ter comprado meu próprio estorvo com alguns sorrisos simpáticos e aparente interesse por uma história qualquer; na verdade, é difícil  dizer se isso fazia qualquer diferença para o velho Helton ou se ele habituara-se a se aproximar demasiadamente de qualquer um que fizesse questão de lembrar seu nome.
   Com efeito, eu me lembrava de seu nome e, pelo mérito de suas constantes visitas, também não deixou que me esquecesse de sua feição. Reluzia sobre suas grossas sobrancelhas um moreno escalpo livre de qualquer fio, o que em conjunto com a maltratada pele não deixava dúvidas de que era bem mais velho que eu, apesar de sua baixa estatura. Era bastante franzino também, o que se fazia notar principalmente durante os muitos acalorados e inoportunos abraços que, regularmente, me aplicava, fazendo que me sentisse como se abraçado por uma coluna de mármore.
   Existia qualquer fator que lhe emprestava um ar de malquisto que era capaz de tombar borboletas primaveris em pleno adejo; talvez fosse por forçar-me a uma intimidade que não nos dizia respeito, por excesso de anedotas repetitivas e sem graça, ou pelo jeito que não tirava os olhos de mim o tempo todo, como uma garotinha curiosa; eu jamais soube dizer. Aliás, aí está algo que me punha em alerta; que suas atitudes não fossem oriundas da camaradagem de um impertinente, mas da paixonite de um pervertido. Por vezes, cheguei mesmo a me enfurecer com o seu apalpar em meu braço e gritei que se danasse e ficasse longe de mim. Era nauseabunda a ideia que, ocasionalmente, tinha de que ele fosse como um desses maníacos contidos que aproveitavam-se como podem da fragrância púbere de um garotinho e do que se pode tatear de sua pele, para que possa delirar sozinho, aliviando seus anseios com a memória sensorial que furtara, impercebido, de sua vítima. Mas não era ele um maníaco, nem eu um garotinho. Se havia algo que ele poderia ser era um efeminado, o que pra mim não era tão diferente.
   Muito pouco ainda sei, sem dúvidas devido a um agudo desinteresse, da vida deste que me aporrinhava. Não devo tê-lo visto com mais que dois pares de roupas, o que, deduzi, era em virtude de seu trabalho como vendedor ambulante de balas e doces, que não poderia fazer mais do que sustentá-lo. Na verdade, não sabia se necessitava sustentar-se, pois sequer era de minha ciência se tinha ou não família. De qualquer maneira isso lhe dava todas as condições e o tempo que necessitasse para vir gastar comigo, convidando-me para um almoço, ou um refresco, ou, que se dane, só uma voltinha por aí.
   Vá com Deus, ele dizia em nosso melhor momento, quando nos despedíamos. Pode ser que fosse apenas isso: um cristão a dedicar-se ao amor a sua própria maneira esquisita. Por certo recusei inúmeros de seus convites de ir à igreja que frequentava; não que me incomodasse seu proselitismo, apenas, como dito, não nutria nenhum interesse especial por sua companhia a longo ou curto prazo.
   Não há muito Helton veio fazer-me mais um de seus convites: um almoço na quinta-feira que estava próxima de seu aniversário, e, dessa vez, me pareceu mais insistente que de costume, de modo que não pude simplesmente recusar ou engendrar uma nova desculpa ao constatar que já havia esgotado todas as velhas e plausíveis. Disse-lhe que pensaria e agarrei-me à esperança de que o acaso não nos fizesse esbarrar por aí; e não fez.
  Jamais soube exatamente o que significava para ele, mas deve ter contado de mim à quem conhecia, pois seus companheiros de igreja me procuraram certa manhã. Helton morava na rua; não mantinha contato com o pouco de família que lhe restava, talvez até mesmo eles o evitassem; não era velho também, tinha apenas alguns anos a minha frente, e, deixara de resistir na noite anterior ao câncer de pulmão contra o qual lutava, com recursos de doação, havia 6 anos.
   O impertinente e velho Helton estava morto.
   Não tive a indecência de dar as caras em seu enterro e não julguei necessário. Sabia que chegaria muitas vezes, dali em diante, a sentir na penumbra vivaz da madrugada, oscilando entre sonhos e realidade, o sufocante cheiro de flores e formol da morte, a perfurar meu âmago, envenenando-me com vulgar remorso; e eu deixaria que a Culpa percorresse minhas veias, oxidando-as, e se abrigasse em um sombreado canto de meu espírito; sem impedi-la de me fazer perceber a essência das atitudes de alguém que já não está mais aqui. Perceberia, então, que se me constrangia com algum forçoso abraço era porque não havia um amigo ou mesmo um familiar que o concedesse por boa vontade, fazendo-o vir a mim, um qualquer, para que suprisse sua necessidade de calor humano; e sucumbiria, tardiamente e sem lutar, ao pungimento desse pensamento.
   E se desde então Helton vive, para mim, em cada rosto novo e atitude amigável é porque o carrego, de alguma forma, aqui: na memória, como um pesaroso abraço indesejado; e na consciência, como uma substância apodrecida, de destino e forma indefinidas, mas que se originou de uma ternura que não foi gasta. Não com quem precisou. Não quando era possível. E agora nunca mais.
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Hoje você faria 31 anos; descanse em paz, amigo. (29/08/2014)

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Sede de...



Imerso na atmosfera sombria do bar, apagado pelo véu de fumaça de cigarros, desorientado pelo cá e lá das muitas vozes, aquele mesmo homem de um outro dia novamente ocupava o lugar no balcão diretamente oposto à porta de entrada, cabisbaixo, bem vestido, fitando o copo meio vazio, como se, a essa altura, já tivesse se apercebido que a bebida não o preenchia como precisava que o fizesse. O bar, como uma cova, abrigava muitos cadáveres do fim do dia, que iam enterrar suas carcaças e buscar a ressurreição de sua alegria nos vapores do álcool. Com ele não era diferente. Não obstante, cada vez mais se dava conta de que não poderia, por esse meio, alcançar o menor resultado, que o esvaziar dos copos, longe de resolvê-lo, representava uma tragicômica versão inanimada da sua realidade.
O balconista, criatura seca, sem lábios, de sobrancelhas escassas, gostava, entre um gole servido e mais outro, de observá-lo. Tinha curiosidade pela abstração e infelicidade do homem. Era o mesmo sujeito que certo dia chegara até ele e com aflição pedira um gole de metafísica. Na ocasião, ficou sem saber o que dizer. Preferiu não se irritar, e, desde então, sempre que restavam apenas os dois no bar, agarrava uma garrafa próxima e lhe servia uma dose grátis.
Não conversavam nada, embora sentissem que se entendiam bem. Talvez achassem, na cor vermelha dos seus olhos, que tinham cicatrizadas no rosto as marcas da mesma amargura. Em realidade, não era bem assim. Contudo, serviam-se eficazmente de companhia.

-Ainda te devo aquele gole de metafísica... – comentou o balconista. A essa altura, acreditava poder espiar por debaixo da circunstância silenciosa que cobria o seu amigo.

-E é hoje que vai me pagar a dívida?

-Acredito que não. Pensei, pensei, mas não acredito que tenha encontrado a porção de irrealidade que te tire os pés daqui.

-As outras bebidas já não me servem mais. Nem sei se já serviram. Eu apenas não tenho ideia do que fazer. Ou mergulho nessas doses ou vou mudo para a gaveta todo fim de tarde. De qualquer jeito, estou me despedaçando.

-Por isso mesmo, quem me garante que, ao, finalmente, te servir o teu necessitado gole de metafísica, eu não estaria te despedaçando ainda mais quando tu percebesses que nenhum dos teus problemas mudou, que o teu vazio continua aí?

-Não. Será diferente. Porque então bebê-la-ei todo dia, pela manhã, tarde e noite. Estarei tão embriagado que não mais poderei acordar quando tropeçar nesses fatos e rotinas. Não. Estarei inteiramente ébrio. Seu calor será como uma nova alma, uma nova perspectiva. Bêbado dela, com os olhos turvos, sorrirei para tudo aquilo que então me fez chorar. É o que faz a metafísica: dá aos seus bêbados a insensibilidade. – e apoiou o rosto sobre a palma da mão direita, sentindo a precipitação daquele sabor pela garganta. –Dê-me um pequeno gole que seja e nunca mais verá este farrapo de homem diante de ti.

-Estaria em suas mãos, se eu a tivesse aqui. Infelizmente, bem sabe que não. Mas não desista, companheiro. Não é difícil topar com um embriagado desses por aí. Portanto, não deve ser difícil de se embriagar tampouco.

-Pois é... – sussurrou o homem.

Com a mão livre, fez deslizar o copo para perto da garrafa amparada pelo balconista, que virtuosamente converteu mais uma dose para dentro do receptáculo vítreo.

-Bem, este não é o caminho, mas, por enquanto, é o que posso tomar... Vou andar em círculos e tontear. Uma solução temporária...

Mais uma vez, depois de tragada a anterior, o balconista lhe serviu outra dose.

-Posso saber como acha que devia ser? – perguntou.

-Diferente.

-Mais feliz?

-Acho que sim.

-E o que é felicidade?

-A mais maldita palavra que já se inventou. Uma maldita droga, da qual já nasci dependente. E pela qual rastejo por aí, e cujo gosto, que vivo a imaginar, torna tudo mais amargo.

Nesse instante, o balconista observou o homem, imaginando-se muito ingrato para com ele. Perdeu-se, por um momento. Enquanto divagava, sentiu o súbito movimento a sua frente. O seu companheiro ia saindo do bar. Amanhã estaria ali novamente. Podia não encontrar naquele bar a sua quantidade entorpecente de metafísica, porém, voltaria e beberia, sem alternativa. Que miséria!


De repente, tomado de absurdo transtorno, o balconista se voltou para sua estante ampla de bebidas, místicas sedutoras, promíscuas beldades. Agarrou do extintor de incêndio sob o balcão e arremessou contra as garrafas. Às que ainda estavam intactas, varreu com um solavanco, fazendo reboar pelo bar uma espécie de sinfonia apocalíptica e um amargo dilúvio. De algumas, chutou os pedaços maiores para longe. Depois, sozinho à meia-luz, revirou as mesas que conseguiu e caiu ao chão, exausto. Havia um pouco de sangue entre seus dedos, e o contemplou escorrendo com satisfação. Fora corrompido por uma iluminação, talvez. Não sabia ao certo. Todavia estava satisfeito, pois julgava haver algo de justo naquele ato insano. Amanhã, não mais estaria indicando às pessoas o falso caminho, nem lhes oferecendo péssima companhia.

Esperança

Nascemos do ventre morno
do mundo,
No frio que é o amanhã
Nos imaginamos.
Foi uma cova pequena
Cavada pela ilusão
do tesouro.
Não obstante a dor,
Sorrimos.
Aquecidos num aperto
de mão
Galgamos possibilidades
Perdidas.
E confrontamos, por fim,
com um produto de lágrimas
Plantadas no passado.

Anônimo no Anonimato em algum lugar do tempo

Crônicas sobre escolhas

"Ser ou não ser? Eis a questão", já dizia William Shakespeare quando indagava a respeito de suas dúvidas. Pergunta essa que paira no ar, ainda hoje, e sem resposta. Quando nos foi dado inteligência e conhecimento do bem e do mal, surgiram as dúvidas, claro! As dúvidas mudam de tempos em tempos, mas ainda estão ali.
Que atire a primeira pedra, mesmo o que se jugar confiante sobre as próprias decisões, aquele que nunca teve dúvidas das coisas que acredita.
Para mim, a pior das dúvidas é: o que quero ser? Artesão, músico, engenheiro, advogado, médico. As opções são infinitas. Mas e se eu não quiser nada? Por que limitar o potencial a opções já predefinidas? E mesmo que eu tenha um diploma, por que tenho que dar certo?
Por falar em dar certo, o que é por definição essa expressão? Dar certo é ter remuneração, aceita pela sociedade, ter carro do ano, poder viajar, ter filhos, uma família; dar certo é ter como vida uma propaganda de televisão. Isso não é dar certo!
Quanto às escolhas, hoje pensei, não quero felicidade, nem prosperidade, não quero ter uma vida idealizada por outros. Hoje pensei que quero viver, e que as maiores dúvidas na minha cabeça sejam: Será que faz sol ou chuva?

domingo, 24 de agosto de 2014

Cria Ingrata



-Começo por rabiscar uma página de rascunho... – o rapaz disse, interrompendo-se perante o imperativo gesto da mão do seu anfitrião.
-Eis um ritual que não transmite qualquer matiz de eficácia a quem o imagina num primeiro momento.
-O senhor, meu caro, há de notar a sua proficiência se me permitir terminar a explicação dos meus métodos.
-Eis uma disposição que não encontro em parte alguma do meu ser. Na verdade, se o trouxe aqui foi pelo prazer de demonstrar o quanto desprezo toda sua obra. De fato, não consigo imaginar o mínimo proveito em seus escritos. Incomoda-me imaginar suas inspirações, uma vez que, por análise da estrutura e frieza de seu texto, só consigo concluir que elas são as mais pobres e doentes.

Boquiaberto pela audácia do homem, Natanael mal conseguia driblar a instantânea gagueira que o assaltou, inundado de surpresa. Ei-lo debochando de seu trabalho, algo que não esperava, tamanha era a fé que depositava em seus últimos esforços. O sorriso leviano sob o bigode ralo supunha uma malícia faminta.

-Tente entender...
-Garanto-te que não tentarei. São bastante firmes as minhas opiniões a respeito da sua obra.

Mas Natanael procurou não ceder e responder com inflexibilidade à inflexibilidade. Foi com o mais nobre ensejo de aprovação que se dirigiu para tal encontro. Não entregaria os pontos por menos que o fazer-se entender.

-Há nesses meus escritos uma...

Fora cortado mais uma vez.

-Diabos! Nada de considerável pode ser dito em suas explicações. Que me diz dos seus personagens? Acha que merecem o fim que lhes concede? Ou que é justo o ambiente psicológico enfermo que se lhes apregoa?

-Que posso fazer? Há um propósito por trás de toda a dor. Há um plano. Veja bem...

-Não! Não o vejo. Quero distancia de seus métodos e razões. Pouco me importa a sua medíocre visão superior. Para longe de mim com sua maneira de organizar as coisas.

-Ora, é preciso que compreenda...

-De forma alguma. A mim basta que enfeie os personagens, espaços e situações com sua estética. Sofrem e ainda o fazem de maneira suja. Maldita seja a visão míope a que os condenou! Tudo em nome do seu bendito plano. Que importa que os deu à vida, se lhes impõe um inferno como pagamento. E que esperança podem ter, se nestas páginas ficam condenados a eterna representação dessa danação?

Então, já não cria Natanael que pudesse se desvencilhar dos arraigados obstáculos cravados por esse indignado senhor. Tamborilando os dedos, com resignação forçada, disse:

-Quer dizer...

-Quero dizer que nada me agrada mais que me ausentar dessa selva tecida em linhas tortas com uma pena sádica salpicada de sangue.

-É sua decisão?

-A única.

-Ok.

Frustrado, as faces levemente pesadas de desânimo, Natanael agarrou o sujeito pelo colarinho e o atirou para dentro da lareira, observando-o entrar em combustão com um sorriso carbonizadamente satisfeito. Em seguida, quando haviam sobrado apenas cinzas do homem inconformado, o rapaz deu meia volta e saiu do cômodo. Fechada a porta, estava de volta a sua mesa de trabalho, a caneta, criadora incansável, na mão, procurando encontrar um personagem menos contrafeito a sua sina. 

sábado, 23 de agosto de 2014

Quem Estava Ali?




Tive minha dose de distâncias nessa vida. Fui descuidado em minhas caminhadas, mormente com meu corpo. Tanto que, aos 25 anos, já falo com um sotaque de velho matreiro e carrego no rosto rugas pérfidas que me mentem a idade. Mas não me envergonho da minha velhice estranha e precoce. Se assim cheguei, aqui, às minhas duas décadas e meia, foi porque vivi o bastante e com orgulhosa entrega. E nessa corrida louca conheci de tudo que poderia querer conhecer: pessoas admiráveis, lugares divinos e histórias, as mais variadas histórias.
Algumas delas passei para o papel, e, de todas as minhas recordações e pequenos artefatos conquistados, as histórias sempre me parecem mais valiosas que todo o resto. E uma delas, a que primeiro escrevi no caderninho surrado, e que, vez ou outra, gosto de reler, é a que mais me encanta. Um pequeno garoto, um pequeno amargurado que, desde muito cedo, aprendeu a não acreditar nas amizades, certa ocasião, contou a mim o seu drama.
Amuado e desconfiado dos meus sorrisos, Tomás confessou que tivera um grande amigo há um tempo. Brincaram muito e todos os dias. Tinham gostos parecidos. Aonde um ia, lá estava o outro. Eram mesmo malucos da mesma forma. E o quer que assustasse a um deles, pouco afetava o outro. Completavam-se e se protegiam. Aprendiam e ensinavam-se.
            -Que nome tinha? – perguntei.
            -Nunca disse. Pra ficar fácil, chamei ele de Cabeça de Balão. Subia nas árvores e dizia que tava procurando pra ver se achava o navio que tinha abandonado ele na cidade.
Lembrou de tudo que faziam juntos, todas as grandes aventuras que fantasiavam, e evocou um fatídico dia em que sentaram sobre a ponte velha da cidade e imaginaram como seriam adultos corajosos e charmosos.  
Não o foram, ao menos não juntos. As pessoas grandes logo se fartaram da amizade que tinham. Os pais, irmãos e outros, já não podiam suportar uma criancice que ia para os lados da loucura. Berravam com Tomás e o proibiam de abrir a boca. Ameaçaram mesmo agredi-lo. Homens eruditos chegaram a palestrar-lhe um sermão sobre o verdadeiro amigo da humanidade. Houve também os que não deixaram de ver a coisa sempre com humor, mas que nada demonstravam por respeito à família e assim colaboravam com a repressão às necessidades de Tomás.
            -Pare de falar desse pequeno demônio! – berrou alguém no escuro de um pesadelo.
Chegou, então, o dia em que Cabeça de Balão apareceu e arrastou Tomás até um canto silencioso da ponte velha. Ali, mostrou ao amigo um pequeno baú e disse:
            -Fui de noite à sua casa e peguei de você um pouco do que também peguei de mim: um pouco da nossa amizade. Vamos enterrar aqui, num lugar seguro, pra que fique bem protegida dos adultos. Assim, ninguém vai destruir de vez aquilo que faz a gente brincar junto.
Enterraram o pequeno baú, ainda que Tomás não entendesse direito o que fazia. Por fim, sentaram-se mais uma vez sobre a ponte e algo no sumir do sol no horizonte tirou deles toda a vontade de falar.
Foi assim que passaram seu último dia de amizade. Cabisbaixo, a voz a falhar, Tomás lembrou que não teve mais qualquer notícia ou visão de Cabeça de Balão. Quase como um fantasma, em muitos dos dias que se seguiram, podia-se vê-lo parado sobre a ponte velha, ou sobre algum ponto alto sobre os telhados das casas a observar.  Até que se cansou.
            -Nossa amizade ficou enterrada lá – disse com amargura.
            -Como se conheceram? – perguntei.
            -Um dia apareceu e atirou pedrinhas na minha janela. – respondeu e ficou mudo por um momento. – Aquele navio deve ter levado ele de volta.
                                                    
De todas as histórias esta é a que mais me marca, sempre que viajo por este meu passado. É sempre nessa cidade de memórias que faço parada e me deito a ouvir o que conta o pequeno Tomás. Há algo que inflama a certeza de que é aí que se encontra o início de toda a trilha que vem a seguir, quando três dos meus EU se tocam. Talvez.
O lugar onde foi enterrado o baú continua intacto. Assim permanecerá. Não me arrisco a voltar lá, assim como Cabeça de Balão não voltou. Não me arrisco a confirmar que os adultos estavam certos. 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Sobre a Borda




Os zumbis estão por aí, em todo canto. Cheiro de putrefação vai escoando de rua para rua, de beco para beco. Estou sozinho em meio a essa desolação. Em algum momento da jornada fui abandonado pelos companheiros. Não sei que rumo tomaram. Certo é que estou só. Faz tempo que não vejo ninguém.
Não tenho mais medo. A última vez que o senti foi quando cai de cara no chão, a boca acertando em cheio o asfalto e o gosto de poeira e sangue adensando a minha saliva. Naquele momento, sentindo uma fração do meu braço esquerdo ser retirada do seu todo por dentes selvagens, fui tomado do mais insano pavor que jamais me assaltou. Debati todo o meu corpo, odiei e violentei dum jeito que nem lembro a coisa que primeiro me violentou. Foi como escapei. Foi meu último suspiro de medo. E me dá saudade de certo modo.
Agora não o sinto mais. Nem preciso dele. As coisas já não me atacam. Fui mordido e estou me tornando um deles. Não sei exatamente quanto mais falta. Posso apenas sentir os tremores ficando mais intensos e uma febre constante. Meu braço está repugnante. Como tenho nojo dele nesse momento por me lembrar que sou um quase morto. Tampouco entendo o mecanismo do instinto destas criaturas que tão rápido os leva a me ver como seu igual, quando, ainda há pouco, eu era parte da refeição.
Não dói. Não fisicamente. Mas percebo que vou sumindo devagar. Não consigo mais lembrar do rosto dos meus pais. Enquanto caminho por esta rua cheia de lixo e coisas abandonadas, muitos deles se arrastando do meu lado, tento puxar na memória um dia que vivi com minha família. Lembro a situação, mas os rostos estão borrados. Merda! Só reconheço as feições do meu mais velho irmão. Nem entendo como vivi todo esse tempo apático com a distância entre mim e ele.
Tempo. Não me resta muito agora antes que meu fundamento de vida se torne a caça aos meus antigos semelhantes e minha única obsessão seja a carne viva da qual perdi o direito de habitar. E essa vontade de carne viva não seria, talvez, um resto de humanidade preso ali dentro, tentando absurdamente se conectar ao passado? Romantismo risível. É somente decomposição e miséria mesmo. Não é preciso um sentido. Nem mesmo precisa ser injusto. Quem disse que nasci para a felicidade?
Saco! Estou pensando demais. É só que estou agoniado com a proximidade da transformação.
Sendo assim, se meus momentos de humano se esvaem, quero aproveitar esse tempo escasso para concretizar um último ato de homem. Mas o que? Quase não me vem à cabeça uma idéia de atitude humana. Vou me perdendo. Rio de desespero. Espere! Que tal uma carta? Sim, uma última declaração. Mas como, se não há quem a leia ou quem a entregue por mim. Minha saliva está pegajosa, é quase um muco. Não importa! Mas... Não consigo achar a palavra.
A carta! Não importa que não seja lida, mas apenas que seja escrita. Ou nem isso. Não tenho caneta por perto e não me aventuro a perder tempo procurando uma. Contudo, ali está uma folha de papel. É o bastante. Ilustra bem minha necessidade. É o último conforto ao qual me agarro, meu legado como alguém que se sabe quase no fim.
Minhas mãos tremem. Há um dos zumbis atrás de mim. Que será que compõe a matéria de sua consciência? Aaaahhhhh!! Isso foi um gemido. Minha respiração está acelerada. Pra quem devo idealizar essa carta, minha última carta? E o que deve conter? Um desabafo? Um insulto? Rio. Ora, isso também faz parte do que é ser humano, acho. Uma confissão de amor. É o que merece ser. Mas dedicada a quem? Minhas entranhas se contorcem, é como imagino que se produz essa dor. Quero urrar, mas não me permito esquecer ainda a carta. Para quem enviar? Para um amor do passado. É justo. Para um do qual ainda me lembre. Qual?
Vejo um rosto nas memórias moles. É bonito, e é pra ele que ofertarei esta carta. Sim. Para este que é a única figura que consigo atrair diante da palavra amor neste meu epílogo. É a minha idéia final de amor enquanto alcanço a decomposição. Que nem sei se realmente amei. Então nesse meu suspiro agonizante paro, o papel cai de minhas mãos, e percebo...  
Já não lembro mais o que é amor.

A última viagem

                                                 

Lembro de deitar no gramado da minha amiga e olhar para o céu, me aproximar dele, tudo ganhou relevo, e tinha um som próprio, uma cor única. A vida pulsava de fora para dentro, eu podia a sentir, era tão sólida que eu quase podia a tocar. Por um instante, era como se eu não fosse um , eu era tudo, eu fazia parte do todo. 
Cada momento era a hora de uma ação dentro de um ciclo do infinito. Sempre havia uma coisa maior, maior e maior.
Me vi poeira, pó, cosmos. 
Eu voei e levitei e fui tragada pelo “pra sempre” numa roda de euforismo. 


E tudo que era cosmo, virou caos, e a ação virou inércia e a roda parou , e a música silenciou, as cores morreram e a dança se aquietou.
Aos poucos senti minha vida ser sugada, minuto a minuto deixava de participar do ciclo de ação.
Eu encolhi e afoguei no meu sangue, tudo ficou negro. 

Agora éramos eu e o nada.


Para ouvir: The End - The Doors




Para se Impressionar: Animação EndTrip



A Inconveniência De Comiserar-se



   Alguns gemidos agoniados escapam, pairam, voluteiam por um instante e se estabilizam melodicamente intermitentes no ar. O sol principia a se pôr; ainda que triste, um de seus feixes invade o quarto pela fresta da parede e passa a ser espectador atento do melancólico espetáculo.
 - É sempre assim? - Um homem grisalho, sentado ao sofá da sala contígua ao quarto, pergunta. A ênfase do final de sua sentença fora prejudicada por sua voz esganiçada e afetada, de modo que era difícil dizer se afirmava ou se questionava.
 - É... É. - Murmura o ancião sentado a sua frente; olhos baixos de graves pupilas negras, íris de azul profundo e encarando o absoluto Nada. O amarelado globo ocular entrecortado por incontáveis vasos sanguíneos.
   O homem grisalho percorre a casa com o olhar, a madeira azulada de sua estrutura e os símbolos católicos adornando as paredes; a lâmpada incandescente que pendia jorrava luz dourada sobre ambos. Inelutavelmente voltou os olhos à idosa deitada na cama do quarto; ela tinha seu peito massageado por uma jovem: sua filha caçula que aliviava sua dor lenta e ternamente, com o creme batido das últimas ervas que pôde comprar, misturado ao resto na lata que adquirira há tempos, acreditando tratar-se de bálsamos, mas que eram, entretanto, vulgares hortelãs, prensadas para dissimular sua peculiar fragrância e picotadas para não levantar desconfianças quanto à aparência. A música composta da lamúria da idosa era compassada pelos movimentos circulares da mão direita de sua filha que, aos poucos, cedeu ao cansaço, deixando a pela enrugada e morena abaixo do seu queixo empapada de um consistente redemoinho verde musgo.
 Quando o choro da idosa dissipou-se no ar e deu espaço a uma sufocada oração, o raio de sol que a observava também passou a desvanecer e sumiu por completo, deixando o quarto na obscuridade.
 - Eu tenho que ir agora... - Disse o homem grisalho, olhando o relógio de pulso e então a expressão do ancião que consentia. Cumprimentou-o cordialmente e se retirou rapidamente da casa; colocou-se a olhar pra trás e conceder ainda um último alento de misericórdia ao ver a porta da frente dependurada por pregos e as galinhas no quintal cercado de arame. Sua família nada mudara.
   Deu alguns passos e contemplou o semicírculo formado pelo disco do sol que já quase se ia completamente, e identificou-se com remorso em sua luminescência, que assiste ao sofrimento com afinco de um santo e a impassibilidade da matéria inanimada.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O melhor Show do Céu


Sei que muita gente já ouviu falar de Pink Floyd, mas hoje vou falar de uma musica em especial deles "The Great Gig in the Sky"  do Richard Wright

Apesar de alguns sussurros e muitas vocalizações é possível sentir exatamente o que as vozes e o título vieram colocar como proposta.


Algumas curiosidades sobre a música

*A voz suntuosa que canta a música, é Clary Torry, na época ela não gostava muito Pink Floyd. Quando foi indicada pelo engenheiro de som, não parecia muito empolgada e disse que não poderia fazer a gravação no mesmo no dia pois tinha um show para ir, Chuck Berry. Quando finalmente gravou não entendia ao certo o que deveria fazer, imaginou então que era apenas mais um dos instrumentos, gravou 3 takes e foi embora, achando que nada seria aproveitado. Anos mais tarde entrou na justiça contra o Pink Floyd por não creditar seu nome na composição da música, e só a partir de 2006 que o nome dela começou a aparecer.

Clary Torry, 22 


                                          - Eu cheguei e coloquei os fones de ouvido, e comecei com algo "oh ah, baby yeah". Eles disseram "não, não é isso, se quiséssemos isso teríamos chamado a Doris Troy". E depois disseram "tente algumas notas longas", e eu comecei a tentar. E durante esse tempo eu fui me familiarizando com a música, e foi quando eu pensei "talvez eu apenas deva imaginar que sou um mais um instrumento", e aí eu disse "comece a faixa do início de novo". Uma das coisas que mais lembro era um retorno belíssimo nos fones, Alan Parsons equalizou minha voz maravilhosamente, com um pouco de eco, mas não muito. Quando eu fechei os olhos — como eu sempre faço —, tudo foi se encaixando. Uma voz bem equalizada é sempre inspiradora para quem canta.Clare Torry  



*O titulo original da música era: 'The Mortality Sequence' ( A sequencia da mortalidade)


ALGUMAS PALAVRAS INSPIRADAS

E foi ali que perdi meus pensamentos, ali nem bem me lembro onde. 
Foi embora as metáforas prontas.
Foi embora as noções de cotidiano, os problemas, as soluções.
Me abstrai, sumi de mim, me subtrai.
Ali eu vejo a luz, ali eu vejo o fim do universo.
Minha mente entendeu, tudo que ela procurou durante uma vida.
Eu juro, me senti viva como nunca. 
Posso correr o risco de dizer que a palavra vida ganhou uma definição. Pena não poder dizer, faltam-me palavras. 
Meu coração dispara, agora entendo. 

Eu sou você, eu sou a musica, eu sou números, eu sou enigmas, eu sou estrelas, eu sou tudo, não por ser onipresente, longe disso. 

Eu faço parte de um todo e o todo faz parte de mim, agora entendo. 

Uma primeira postagem

Os escritores de primeira viagem têm sempre certa relutância ao escrever qualquer coisa.
E comigo não foi diferente. “Escrevo” desde que aprendi a escrever. Quando lia um livro e o achava interessantíssimo, me sentia competente o suficiente para fazer o mesmo. Ma,s na maioria das vezes, só conseguia uma cópia barata da história original.

As ideias sempre vinham, sejam de sonhos mirabolantes – os quais têm muitos- ou de outras histórias. Inspiração nunca faltou.


Na hora de escrever, falta jeito, falta verbo, falta palavra, falta sujeito, adjetivo, predicado, português, matemática, biologia, astronomia e até culinária. A arte de escrever é complicada, pois, como dizia Ludwig Wittgenstein, "as fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo".


Corajoso é aquele que escolhe desbravar esse mar de dúvidas, escolhas e imaginação.

Sempre que vamos escrever alguém já o fez; essa ideia já foi pensada, já foi idealizada, escrita, ouvida, transcorrida e modificada.

A profissão de escritor ficou ingrata, aliada a textos tecidos de maneiras simples e repetitivos. Então o que escrever? Sempre há o que escrever.

Se você imaginar que todas as palavras já estão aí, que todas as ideias e pensamentos já pairam no ar e tudo que você precisa fazer é apenas traduzi-los... fácil e difícil.

Então aos escritores de primeira viagem, assim como eu, digo: Arrisquem-se!

Escrever é a arte da imaginação.

Simone Vilalva