domingo, 23 de novembro de 2014

O Trabalho Ingrato de Natanael Arago

Era noite e Natanael seguia por uma das vielas do cemitério como sempre fazia, as flores emprestando aos hóspedes um perfume que fazia dos túmulos pousadas enfeitadas de damas perfeitas. O rapaz vinha despercebido; o guarda dormia. Caminhava ligeiro, ouvindo as vozes ansiosas, perturbadas, agoniadas. Gemiam como se queimassem. Quando dera a noite, atrasado pelo sono, foi acordado pelo urro do tormento eterno e, apressado, agarrou seus cadernos, vestindo-se de roupas amarrotadas, e pulou a janela, esquecendo-se de trancar a porta, correndo o risco de ser descoberto em sua jornada secreta por alguém da família.
Todos os seus papeis bagunçados vinham debaixo do braço, e a velocidade dos seus passos fazia um e outro voar de vez em quando. Isso apenas o deixava um pouco mais aflito, e, apesar do conhecimento da substância densa do sono do vigia, nesses momentos, levantava o olhar ansioso na direção da guarita. Nada acontecia. Os gritos não podiam alcançá-lo. Mal sabia este e todos os outros o quão gratos deviam ser ao Criador.
Firmou mais uma vez o seu material e prosseguiu. Correu para as ruas do fundo, guiando-se com destreza na escuridão. O silêncio parecia ser uma fantasia perturbada, sendo o barulho em seus ouvidos a realidade escoando por todos os orifícios do tempo e do espaço. Mais para o fim do cemitério, o perfume era modesto, a vegetação escorria por tudo que era vertical, e toda superfície parecia sangrar umidade. Natanael permitiu-se guiar pelos gritos, indo ter com aqueles que fossem mais intensos primeiro. Benditos também os mortos que não se podiam perturbar.
O desespero de Ada era retumbante esta noite. Sua foto estava velha, amarelada, desfigurada, decompondo-se no ritmo de sua forma real. Pingos de água aqui e ali soavam como as teclas dum piano ilustrando um pouco mais a melodia tétrica da alcova dos seus ouvidos. Sentou-se sobre a sepultura dela, cruzando as pernas, afagou os braços para gerar uma fagulha de calor, separou umas duas folhas do seu molho e começou a ler, após um pigarro introdutório. Narrou aquele poema que podia recitar sem ajuda, tantos foram os mergulhos que dera sobre ele. Chegou mesmo a encenar os movimentos, conforme as estrofes. Lera os quatro preferidos de Ada e, flutuante, foi vendo diluir, no silêncio subliminar da noite, os gritos que vinham do seu sepulcro. Nisso, permanecia um tempo considerando qualquer coisa, a erva sobre a pedra parecendo compor-lhe um afago em suas contorções. “Durma bem, querida!”, disse e pelo resto da noite seguiu peregrinando pelos túmulos, cessando a agonia das moças. Na sepultura de Crisálida, deitou-se e cantarolou; cantou uma dúzia de músicas que fizeram-na cessar. A idade fixada na tumba era um disparo para os arrepios do rapaz, que não conseguia se acostumar à atmosfera que empestava os cômodos daquela moça. Teria algum jovem cantado para ela no passado? Faria jus a sua voz apaixonante, que nem a morte podia destituir do seu encanto?
Com Irene, acomodara-se ao seu lado e começara a conversar. Fazia perguntas, e uma sensação que lhe subia a espinha fazia-o crer que tinha sido respondido. Ali, sentia-se diferente. Gostava do local. Uma pulsação morna irradiava daquelas profundezas, uma gratidão reconfortante. E por todas essas ocasiões o silêncio ia se tornando mais substancial, mais palpável. Os gritos que restavam eram menos intensos, porém, deveras tocantes. Pareciam sugerir, apesar de sua menor potência, uma dor intolerável e de tal maneira opressora. Natanael caminhava e, ao fazê-lo, tinha a impressão de que vagava por uma floresta, de árvores densas, labirínticas, sendo atraído pelo eco das suas ninfas ao berço dos carinhos e prazeres, indo, porém, perder-se nos muitos abraços da noite sufocante.
Para Lauriene só bastava que se encostasse a ela e seu suplício terminava. Morreu gelada, louca pelo último toque do calor de seu amado. Concluía rápido com ela, mas não prosseguia ligeiramente. Impedia-se por um momento frente a uma sepultura silente. A criatura ali abarcada era linda, sua imagem tão viva, nada deteriorada se exibia diante do sepulcro. Se fosse preciso, acalmar-lhe-ia as dores com disposição, correria primeiro a ela, e às outras, atender-lhes-ia com ligeira obrigação ao fim da noite. A insatisfação, porém, não lhe acompanhara à clausura. Retornando à consciência da agrura do seu dever, recordando o som agudo que tinia em suas orelhas, apalpando-as, tentando agarrar-se às beiradas do precipício, Natanael avistou a alameda que faltava para terminar sua jornada. Deu uma última olhada de viés à figura de Lucile, ajustou os cadernos sob o braço e seguiu.  
Veio o arrefecer do negrume; Natanael caminhou até Vidiane. Tocou-lhe a pedra do mausoléu, acariciou-lhe a frieza. Esse era sempre o momento mais tenso da noite, quando sobrava um único desespero para curar. Os gritos interrompiam-se de repente, o ambiente ficava rançoso, fluido, e Natanael conseguia ouvir o flanar crescente do vestido. Nesse instante, fechava os olhos e se preparava. Pareciam vir presenças correndo para ele de todas as direções. Virava e encarava a silhueta nublada, a figura de bruma que vinha se insinuando até ele, surgida do nada. Os braços, como fumaça, cingiam-no, ele cingindo a cintura etérea. Começava então a dança. O solo ia desaparecendo num cobertor de névoa, que parecia alimentar aquela criatura, tão insatisfeita, tão abruptamente não concluída, essa reticência que clamava à escuridão pela sua realização. Dançaram pelo que sempre parecia a eternidade. As flores pareciam cantar para eles. O garoto sentia vibrações em seus lábios, então, um gosto amargo preenchendo sua boca. Umas figuras invadiam sua mente, colorindo com uma sobrecasaca de ambientes recordados o âmbito do cemitério. Quase podia ouvir a canção dum baile. Rodopiaram, e a nuvem que cobria o chão foi escoando. Vidiane foi tornando-se uma sombra cada vez mais pálida. Era o fim do ritual. Foi o momento marcado em que ela, sem expressões, só uma silhueta glauca, disse:
-Vais me deixar?
-Vá dormir. Pela manhã eu volto para lhe arrancar dos sonhos nos quais te ponho deitada agora.
E Vidiane sumiu sem resposta. Na noite seguinte Natanael voltaria e ela não mais lembraria de sua promessa. Seria só a sombra desesperada e sedenta de novas promessas.
A manhã ia se apresentando. Com seus cadernos e papeis, Natanael deixou o cemitério, seguindo lento para sua casa. Tudo era silêncio, até o barulho da cidade acordando era silêncio. As vozes morreram, tornaram-se as vozes apropriadas dos seus corpos mortos. Sinistro seria se a maré de perturbação fluísse para além dos seus ouvidos. Mortos e vivos estariam em desespero. Ele ia agora para seus aposentos, atirar-se ao descanso nos braços de suas noivas inquietas até que elas despertassem para chamá-lo outra vez.  

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