domingo, 24 de agosto de 2014

Cria Ingrata



-Começo por rabiscar uma página de rascunho... – o rapaz disse, interrompendo-se perante o imperativo gesto da mão do seu anfitrião.
-Eis um ritual que não transmite qualquer matiz de eficácia a quem o imagina num primeiro momento.
-O senhor, meu caro, há de notar a sua proficiência se me permitir terminar a explicação dos meus métodos.
-Eis uma disposição que não encontro em parte alguma do meu ser. Na verdade, se o trouxe aqui foi pelo prazer de demonstrar o quanto desprezo toda sua obra. De fato, não consigo imaginar o mínimo proveito em seus escritos. Incomoda-me imaginar suas inspirações, uma vez que, por análise da estrutura e frieza de seu texto, só consigo concluir que elas são as mais pobres e doentes.

Boquiaberto pela audácia do homem, Natanael mal conseguia driblar a instantânea gagueira que o assaltou, inundado de surpresa. Ei-lo debochando de seu trabalho, algo que não esperava, tamanha era a fé que depositava em seus últimos esforços. O sorriso leviano sob o bigode ralo supunha uma malícia faminta.

-Tente entender...
-Garanto-te que não tentarei. São bastante firmes as minhas opiniões a respeito da sua obra.

Mas Natanael procurou não ceder e responder com inflexibilidade à inflexibilidade. Foi com o mais nobre ensejo de aprovação que se dirigiu para tal encontro. Não entregaria os pontos por menos que o fazer-se entender.

-Há nesses meus escritos uma...

Fora cortado mais uma vez.

-Diabos! Nada de considerável pode ser dito em suas explicações. Que me diz dos seus personagens? Acha que merecem o fim que lhes concede? Ou que é justo o ambiente psicológico enfermo que se lhes apregoa?

-Que posso fazer? Há um propósito por trás de toda a dor. Há um plano. Veja bem...

-Não! Não o vejo. Quero distancia de seus métodos e razões. Pouco me importa a sua medíocre visão superior. Para longe de mim com sua maneira de organizar as coisas.

-Ora, é preciso que compreenda...

-De forma alguma. A mim basta que enfeie os personagens, espaços e situações com sua estética. Sofrem e ainda o fazem de maneira suja. Maldita seja a visão míope a que os condenou! Tudo em nome do seu bendito plano. Que importa que os deu à vida, se lhes impõe um inferno como pagamento. E que esperança podem ter, se nestas páginas ficam condenados a eterna representação dessa danação?

Então, já não cria Natanael que pudesse se desvencilhar dos arraigados obstáculos cravados por esse indignado senhor. Tamborilando os dedos, com resignação forçada, disse:

-Quer dizer...

-Quero dizer que nada me agrada mais que me ausentar dessa selva tecida em linhas tortas com uma pena sádica salpicada de sangue.

-É sua decisão?

-A única.

-Ok.

Frustrado, as faces levemente pesadas de desânimo, Natanael agarrou o sujeito pelo colarinho e o atirou para dentro da lareira, observando-o entrar em combustão com um sorriso carbonizadamente satisfeito. Em seguida, quando haviam sobrado apenas cinzas do homem inconformado, o rapaz deu meia volta e saiu do cômodo. Fechada a porta, estava de volta a sua mesa de trabalho, a caneta, criadora incansável, na mão, procurando encontrar um personagem menos contrafeito a sua sina. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário