domingo, 7 de dezembro de 2014

A Nossa Dona Filipa

É uma mãe de pele avermelhada, alta, ancuda, sempre com roupas de trabalho de casa, as mãos sempre molhadas a enrugar as costas do vestido pelo ato de se secarem. O rosto e os braços grossos parecem esculpidos em pedra de tão rígidos. Acorda os galos para que cantem. Organiza a casa, cuida de seus animais, prepara as refeições e os bolos para a venda, conserta o que há para consertar sem nunca reclamar, sem jamais expressar coisa alguma. Quando às alturas da tarde, de enxada em punho a duelar com a dureza do solo cicatrizado, o sol lhe bate forte no esqueleto, não mais que um rearranjar da coluna e a reafirmação do seu dever lhe interrompem o movimento mecânico.

Não precisa de homem, quem o precisa. Constrói seu próprio respeito. A volumosa presença e o semblante da mulher ocupada intimidam os desvios de concepção que o pensamento pode confeccionar. Para quem a conhece, é totem, é monumento de retidão. Se está à beira da cerca num dos seus arranjos da rotina, é certo que os transeuntes a cumprimentem, mesmo lhe chamem a atenção, caso esteja desatenta, para oferecerem os seus bomdias e coisas do tipo, como se sentissem a metafísica obrigação de o fazerem ante tão inviolável conduta. A estes cumprimentos reage quase sempre com um gesto de cabeça, seco, e volta aos seus afazeres que lhe garantem tamanha simpatia.

Tem quatro filhos e duas meninas. Os pais quem é que sabe? Quem é que precisa? Ela manda melhor sozinha. Não é dona de humor fácil, nem sabe se o tem, mas ainda que a pele e o tato sejam de palha de aço, os filhos estão sempre a beijá-la e abraçá-la, correndo a atender-lhe os poucos caprichos. É mãe protetora e rígida, que quer de suas crianças nada mais que obediência. Cozinha, banha, ensina, lava, veste, sem atraso. São limpos, alegres, cuidadosos e silenciosos os seus bebês debaixo do peso de sua asa. Não há testemunha que diga ter visto correr aqueles filhos de Dona Filipa pela sala, atrapalhando, quando ela se ocupa da sua novela da tarde, o pequeno regalo de sua conduta, tamanha a eficiência desta mãe em fazê-los bem-comportados. É mesmo conhecido e comentado por muitos o comportamento adulto, sisudo em quantia, dos seus filhos.

-Dona Filipa é mãe que sabe educar - diz um.
-Daí sai um doutor, pelo menos.
-Que mágica ela tem pra fazer dessas criaturas a educação em pessoa? - pergunta outro.

O que os olhos admirados não podem ver é este ritual da manhã, quando o sol ainda enrola uns minutos no seu leito, momento em que a mãe rodeia sua casinha branca, passa pelo galinheiro, cruza com os leitões, ultrapassa o fundo do seu terreno e chega lá onde vai começar a queda do morro. Ali, diante de umas quatros cruzinhas brancas, estacadas na extremidade de uns quatro morrotes de terra, ela se ajoelha e faz uma pequena oração. Na mão, uma vasilha que fica para trás, repleta de bolinhos de chuva. Ela faz o sinal da cruz, filha obediente que é ao pai supremo, e volta para a casinha, para a rotina de mulher respeitável. Ela atravessa uma cerca baixa de madeira branca que separa este sítio do terreno de sua casa. Sobre a cerca está fixada uma placa rabiscada com letras grosseiras. O que está escrito nela, e que os olhos admirados não leem: "EM MEMÓRIA DOS QUE NÃO ME OBEDECERAM".