sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Indecentemente Pesaroso

Helton Padilha era um pé no saco.
   Aquele tipo que você quer evitar; e eu quase sempre conseguia; mas é claro que ele não ganhou sua fama de inconveniente deixando eu me safar com minha desvontade de encontrá-lo. Tampouco ele permitiria que eu, talvez, me afeiçoasse a ele por sua ausência. Eis o que há: algum conhecido nos apresentou, como que para tirar o fardo de sua amizade dos pés e caminhar por aí levemente; e caminhou.
   A coisa sobre os indesejáveis é que eles nunca o são logo de cara. Portanto, posso ou não ter comprado meu próprio estorvo com alguns sorrisos simpáticos e aparente interesse por uma história qualquer; na verdade, é difícil  dizer se isso fazia qualquer diferença para o velho Helton ou se ele habituara-se a se aproximar demasiadamente de qualquer um que fizesse questão de lembrar seu nome.
   Com efeito, eu me lembrava de seu nome e, pelo mérito de suas constantes visitas, também não deixou que me esquecesse de sua feição. Reluzia sobre suas grossas sobrancelhas um moreno escalpo livre de qualquer fio, o que em conjunto com a maltratada pele não deixava dúvidas de que era bem mais velho que eu, apesar de sua baixa estatura. Era bastante franzino também, o que se fazia notar principalmente durante os muitos acalorados e inoportunos abraços que, regularmente, me aplicava, fazendo que me sentisse como se abraçado por uma coluna de mármore.
   Existia qualquer fator que lhe emprestava um ar de malquisto que era capaz de tombar borboletas primaveris em pleno adejo; talvez fosse por forçar-me a uma intimidade que não nos dizia respeito, por excesso de anedotas repetitivas e sem graça, ou pelo jeito que não tirava os olhos de mim o tempo todo, como uma garotinha curiosa; eu jamais soube dizer. Aliás, aí está algo que me punha em alerta; que suas atitudes não fossem oriundas da camaradagem de um impertinente, mas da paixonite de um pervertido. Por vezes, cheguei mesmo a me enfurecer com o seu apalpar em meu braço e gritei que se danasse e ficasse longe de mim. Era nauseabunda a ideia que, ocasionalmente, tinha de que ele fosse como um desses maníacos contidos que aproveitavam-se como podem da fragrância púbere de um garotinho e do que se pode tatear de sua pele, para que possa delirar sozinho, aliviando seus anseios com a memória sensorial que furtara, impercebido, de sua vítima. Mas não era ele um maníaco, nem eu um garotinho. Se havia algo que ele poderia ser era um efeminado, o que pra mim não era tão diferente.
   Muito pouco ainda sei, sem dúvidas devido a um agudo desinteresse, da vida deste que me aporrinhava. Não devo tê-lo visto com mais que dois pares de roupas, o que, deduzi, era em virtude de seu trabalho como vendedor ambulante de balas e doces, que não poderia fazer mais do que sustentá-lo. Na verdade, não sabia se necessitava sustentar-se, pois sequer era de minha ciência se tinha ou não família. De qualquer maneira isso lhe dava todas as condições e o tempo que necessitasse para vir gastar comigo, convidando-me para um almoço, ou um refresco, ou, que se dane, só uma voltinha por aí.
   Vá com Deus, ele dizia em nosso melhor momento, quando nos despedíamos. Pode ser que fosse apenas isso: um cristão a dedicar-se ao amor a sua própria maneira esquisita. Por certo recusei inúmeros de seus convites de ir à igreja que frequentava; não que me incomodasse seu proselitismo, apenas, como dito, não nutria nenhum interesse especial por sua companhia a longo ou curto prazo.
   Não há muito Helton veio fazer-me mais um de seus convites: um almoço na quinta-feira que estava próxima de seu aniversário, e, dessa vez, me pareceu mais insistente que de costume, de modo que não pude simplesmente recusar ou engendrar uma nova desculpa ao constatar que já havia esgotado todas as velhas e plausíveis. Disse-lhe que pensaria e agarrei-me à esperança de que o acaso não nos fizesse esbarrar por aí; e não fez.
  Jamais soube exatamente o que significava para ele, mas deve ter contado de mim à quem conhecia, pois seus companheiros de igreja me procuraram certa manhã. Helton morava na rua; não mantinha contato com o pouco de família que lhe restava, talvez até mesmo eles o evitassem; não era velho também, tinha apenas alguns anos a minha frente, e, deixara de resistir na noite anterior ao câncer de pulmão contra o qual lutava, com recursos de doação, havia 6 anos.
   O impertinente e velho Helton estava morto.
   Não tive a indecência de dar as caras em seu enterro e não julguei necessário. Sabia que chegaria muitas vezes, dali em diante, a sentir na penumbra vivaz da madrugada, oscilando entre sonhos e realidade, o sufocante cheiro de flores e formol da morte, a perfurar meu âmago, envenenando-me com vulgar remorso; e eu deixaria que a Culpa percorresse minhas veias, oxidando-as, e se abrigasse em um sombreado canto de meu espírito; sem impedi-la de me fazer perceber a essência das atitudes de alguém que já não está mais aqui. Perceberia, então, que se me constrangia com algum forçoso abraço era porque não havia um amigo ou mesmo um familiar que o concedesse por boa vontade, fazendo-o vir a mim, um qualquer, para que suprisse sua necessidade de calor humano; e sucumbiria, tardiamente e sem lutar, ao pungimento desse pensamento.
   E se desde então Helton vive, para mim, em cada rosto novo e atitude amigável é porque o carrego, de alguma forma, aqui: na memória, como um pesaroso abraço indesejado; e na consciência, como uma substância apodrecida, de destino e forma indefinidas, mas que se originou de uma ternura que não foi gasta. Não com quem precisou. Não quando era possível. E agora nunca mais.
______________________________________________________________

Hoje você faria 31 anos; descanse em paz, amigo. (29/08/2014)

Nenhum comentário:

Postar um comentário