sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A Inconveniência De Comiserar-se



   Alguns gemidos agoniados escapam, pairam, voluteiam por um instante e se estabilizam melodicamente intermitentes no ar. O sol principia a se pôr; ainda que triste, um de seus feixes invade o quarto pela fresta da parede e passa a ser espectador atento do melancólico espetáculo.
 - É sempre assim? - Um homem grisalho, sentado ao sofá da sala contígua ao quarto, pergunta. A ênfase do final de sua sentença fora prejudicada por sua voz esganiçada e afetada, de modo que era difícil dizer se afirmava ou se questionava.
 - É... É. - Murmura o ancião sentado a sua frente; olhos baixos de graves pupilas negras, íris de azul profundo e encarando o absoluto Nada. O amarelado globo ocular entrecortado por incontáveis vasos sanguíneos.
   O homem grisalho percorre a casa com o olhar, a madeira azulada de sua estrutura e os símbolos católicos adornando as paredes; a lâmpada incandescente que pendia jorrava luz dourada sobre ambos. Inelutavelmente voltou os olhos à idosa deitada na cama do quarto; ela tinha seu peito massageado por uma jovem: sua filha caçula que aliviava sua dor lenta e ternamente, com o creme batido das últimas ervas que pôde comprar, misturado ao resto na lata que adquirira há tempos, acreditando tratar-se de bálsamos, mas que eram, entretanto, vulgares hortelãs, prensadas para dissimular sua peculiar fragrância e picotadas para não levantar desconfianças quanto à aparência. A música composta da lamúria da idosa era compassada pelos movimentos circulares da mão direita de sua filha que, aos poucos, cedeu ao cansaço, deixando a pela enrugada e morena abaixo do seu queixo empapada de um consistente redemoinho verde musgo.
 Quando o choro da idosa dissipou-se no ar e deu espaço a uma sufocada oração, o raio de sol que a observava também passou a desvanecer e sumiu por completo, deixando o quarto na obscuridade.
 - Eu tenho que ir agora... - Disse o homem grisalho, olhando o relógio de pulso e então a expressão do ancião que consentia. Cumprimentou-o cordialmente e se retirou rapidamente da casa; colocou-se a olhar pra trás e conceder ainda um último alento de misericórdia ao ver a porta da frente dependurada por pregos e as galinhas no quintal cercado de arame. Sua família nada mudara.
   Deu alguns passos e contemplou o semicírculo formado pelo disco do sol que já quase se ia completamente, e identificou-se com remorso em sua luminescência, que assiste ao sofrimento com afinco de um santo e a impassibilidade da matéria inanimada.

Um comentário:

  1. Parabéns, adoro perspectivas altenativas. Alias se a jovem depois do repouso ainda precisar de balsamo, peça que procure-me.

    ResponderExcluir