quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O enterro



Samanta tomava coragem, mais uma vez, enquanto atravessava o corredor do colégio estadual. Como escudo, em seus braços carregava alguns livros, um caderno e um pequeno diário. Seus longos cabelos castanhamente ondulados escorriam pelas expressões de seu rosto; o andar tímido a fazia deslizar suavemente pelos corredores a fim de se fazer desapercebida por companhias indesejadas. Normalmente, apesar do corpo presente, tinha um mundo próprio com ares fantásticos. Aos 16 anos, seu corpo não havia conhecido um homem, mas sua mente fazia-se descoberta todas as noites escuras. Para lidar com a solidão, escrevia um pequeno poema, lia um trecho do livro preferido e masturbava-se delicadamente como quem preserva os próprios prazeres. O ultimo poema escrito, inspirado por seu ultimo amor, dizia em uma das estrofes:
 “Nas profusões do amor, encontro confusa as respostas do amor não correspondido, sua pele negra não reflete a luz que emana do meu coração, permanecesses então na escuridão sem saber de meu amor por ti, como o dia que ama a noite, sol e lua jamais se encontram, exceto por uma única oportunidade. Quisera eu ser abençoada por esse eclipse de paixão.”
Ao entrar na sala de aula para a primeira aula, deparou-se com o cavaleiro negro. Parou na porta e ficou analisando todas as nuances de sua pele escura e obstinada na tarefa de não ter pelos. Sua pele clara, branca como luz, equilibrava bem com as sombras dele. Reparou no belo sorriso perfeitamente encaixado. Perdeu-se no meio dos cachos desfeitos dos cabelos rebeldes. Quando ia da concentração ao transe, saiu do sonho num salto, ao ser descoberta pelos olhos castanhoamendoamente atentos. “Fui descoberta”. Baixou a cabeça e andou até seu lugar. Deitou a cabeça sobre os livros no intento de rever a imagem de seu amado, então mais uma vez desperta de seu mundo de fantasias por um toque no braço, ergueu a cabeça e deparou com Daniel, seu príncipe, com um belo sorriso de bom dia.
Era intervalo, e o rendimento da aula anterior foi de dois desenhos, três versos, e uma tentativa de conto fracassado sobre um homem que fora amaldiçoado por uma cigana e perdeu seu passado e futuro, difícil. Sentada embaixo de uma árvore, tentava ler um novo livro, Cidade de Vidro, mas não passava da primeira página. Há dias certa ansiedade começava a incomodá-la; sentia que tal sentimento chegara ao ponto de tornar-se um tumor seriamente perigoso. Um pensamento inquietante tomava a frente na lista de afazeres. Esse dever, que ela deixava para outro dia, seria feito hoje, sem mais adiantamentos, precisava ser. Fechou o livro abruptamente e, num caminhar trotesco, foi em direção ao Daniel; disse todas as palavras em uma só: “precisofalarcomvocêagora.” Visto que ele era compreensivo e despediu-se de seus amigos para tratar de sua amiga.
“Você parece doente, o que lhe aflige?”
Com profundo olhar de piegas saiu da escola e fez sinal para que ele a seguisse. Não muito longe, havia um cemitério, pouco visitado, mas de beleza extraordinária. Sempre que Samanta precisava de inspiração, buscava ali um recanto silencioso. Rodeado de árvores floridas e frondosas, com lápides cuidadosamente esculpidas e uma linda capela feita de madeira. Samanta procurou um lugar para sentar. “É aqui que os amantes se encontram para matar coisas: saudades, desejos, medos... Apesar da funesta tristeza, este em especial me traz paz, por permitir que não apenas os entes queridos sejam enterrados mas também sentimentos.” Virou o corpo para Daniel e, com os lábios tremendo, disse: “Sei de sua condição, sei que ama outra e sei também que estou apaixonada por você. Contar isso aqui é enterrar tal amor. E agora que sabe posso seguir em frente e esquecer tudo isso.” Sem nem esperar resposta caminhou até o portão como quem fugia de algum fantasma. “Espere Samanta, não pode vir aqui me dizer essas palavras e esperar que eu ignore tal declaração. Sabe que sou de outra e prometi meu coração. Mas em nome da amizade, que não deixa de ser amor, proponho a você um beijo. Vamos ver o que sentimos.” Quando Samanta ia se aproximar, Daniel a deteve. “Vamos a minha casa, não há o que enterrar hoje.”
O caminho pela rua foi silencioso, o ar era tão denso que logo eles flutuariam. O Apartamento não era longe, dava tempo de voltar até o fim da aula. As escadas do prédio eram infinitas assim como o silêncio que perdurou até que abriu-se a porta da casa. “Olá”disse uma voz feminina para Samanta. Certa de que deveria ser a mãe, tremulamente beijou seu rosto, nada encontrou para dizer. “Nós viemos buscar uns livros.” Salvou Daniel, que gritava do quarto para a mãe enquanto tirava as botas de couro marrom. Fez sinal para que ela entrasse.
 Timidamente esperou o fechar da porta, o silencio ainda mais profundo incomodava era quebrado apenas pelo tilintitar das coisas e os rugidos pelo caminhar no chão de madeira, cada som a fazia ter um breve susto, como quem esperava a hora de ser abatida. Sabia, era o eclipse.
 Sem dizer qualquer palavra Daniel gentilmente acariciou seu cabelo, observou-a finalmente, percebeu a beleza escondida por trás da carapaça de seriedade, era fato que tal moça pura e intocada lhe dava certo desejo, um pequeno fetiche se escondia por trás da intenção em traze-la em casa, entendeu: um beijo apenas salpicaria seu paladar e tinha fome. Passou as costas da mão docemente nas bochechas macias da moça, era como se estivesse no escuro, usava as mãos para descobrir quem era a formosa menina moça. Seu olhar ficou morteiro, sua boca foi se abrindo e lá foi pousar nos lábios delicados de Samanta.
A respiração ficou ofegante, e o quarto ficou mais escuro, as mãos e as peles foram explorando os cantos. Neste dia de noite, Samanta não preservou o prazer, entregou-se, deixou-se enegrecer, misturar-se. Foi no intimo e buscou ali o ultimo fio de vida que parecia restar. Escureceu, e o fôlego acabou, e as mãos cansaram, e o corpo estremeceu, só restavam agora sangue e suor.
O eclipse terminara, deixando nem mesmo a sombra da escuridão, Samanta agora via-se refletida no rosto de Daniel e então ali algo mudou.

Samantha voltou para casa, não conseguia pensar em mais nada. Caminhou em silencio. Bateu a porta da sala, a voz na televisão na sala, dizia : “Hoje, pela manhã, aconteceu um fenômeno chamado de eclipse solar, que é quando a lua fica na frente do sol. O próximo acontecerá daqui a dez anos...” 

E então entendeu o que mudou.

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