O céu cor de
cereja não tivera em outras épocas, quando o mundo ainda padecia das epidemias
de coração arrebatado, o poder de atrair olhares como agora. Era o fim da
tarde, e caminhávamos lentamente um ao lado do outro rumo àquela ladeira
atapetada de grama ainda verde, onde se podia ver melhor o por do sol.
Vencedor, o Faulkner pesava na mão, tive de soltá-lo, minha resistência tendo
falhado em toda sua teimosia. Um Bukowski seria mais gentil para o punho,
contudo, não me entregaria à tentação de tão precário benefício. O Hesse já
havia ficado para trás, enquanto o sol, cada vez mais adiante. E somente o
García Marquez resistia na mão do amigo.
As solas de
nossos sapatos já deviam ter cruzado todas as procissões possíveis, iam cada
vez mais finas, e nossos pés desenvolviam uma visão própria, palmeando o solo
com frequente e tamanha intimidade. Melancolicamente, compulsivamente,
seguíamos, não parando nem para ceder a nossas ânsias físicas, como se só nos
restasse deixá-las para trás com passos insistentes para nos tornarmos filhos
completos do novo mundo.
Por toda
parte, os carros abandonados seguiam a canção das ruas silenciosas e aguardavam
sem ansiedade, à moda de fiéis prostrados, que as luzes mortas dos semáforos
ressuscitassem e decidissem novamente o rumo de sua existência. Nossa ambição,
porém, era outra, e os ignorávamos, feito ignorávamos que as janelas tinham
olhos por trás das pálpebras de tecido das cortinas, e julgamentos covardes e murmurantes
corriam pelos corredores. Havendo um belo sol a nos abandonar, um tão belo lago
de chamas ondulantes que definharíamos de bom grado, tal qual Narciso, a
admirá-lo, não morressem primeiro os nossos olhos ao seu reflexo fatal, a
consciência de sua partida nos deixava cheios de sede de gotas de arrebol. Sede
antiga, que os tumultos da vida perdida não nos permitiam mitigar.
Ultrapassando
pedregulhos e entulhos, tínhamos as portas escancaradas de edifícios a nos sorrir
como bocas preventivas de cavernas que encerravam segredos impudicos e
selvagens, assomando ao crepitar crocante dos fragmentos dos prédios sucateados
sob nossos passos, e enquanto seguíamos para a ladeira verde, alternávamos
nossa direção, desviando dos vários sacos de lixo e de seu conteúdo que vazava
como vísceras de corpos inertes. Ainda veríamos pouco antes de nossa íngreme
parada, para consolidar a interação com nossa nova realidade, uma senhora que
caminhava com pés pesados, trajada de camisola, a mão ia tateando vagamente o
ar a sua volta, perturbadoramente, e podia-se ouvir suas frases carinhosas para o estranho invisível mesmo quando já havia desaparecido atrás de um grande furgão.
Nessa altura,
percebi, as vitrinas começavam a ondular, assim como meus companheiros pareciam
ir se dissolvendo. Falei com cada um deles, e suas palavras iam emolduradas,
ora vinham etéreas e sumiam num galope mais veloz que nossa sanha de ver o pôr
do sol. As nuvens iam qual vapor atrasado na direção do horizonte, tão
apressadas estavam para ocupar seu lugar no espetáculo, enquanto sentia um
estranho solavanco a me sugar pelo centro do umbigo, quase que tirando meus pés
do chão. Então, em meio a tantas e repentinas sensações, cruzáramos com um
miserável doido. Ele tinha a cabeça apoiada num poste até nos ver e levantar os
olhos inundados, num prorromper de esperança como nem uma criança abandonada
poderia expressar. Moveu-se atabalhoadamente, subjugando a presunção das pernas
tortas, e nos disse um choroso “oi”. Passamos por ele sem responder. Já não
éramos mais os mesmos, rígidos pela sede. Somente podíamos ouvir o seu berrar
infantil em busca da nossa resposta, a ausente resposta que tanto o feria, sendo
que não demorou para que ouvíssemos o nauseabundo esmigalhar contra a parede,
repetidas vezes. Ainda assim continuamos. E finalmente alcançávamos nosso
destino, finalmente beberíamos daquele partir do sol. Sentia-me flutuar com ele
pela borda do mundo, minha gravidade nada mais que uma versão infantil da falta
de esperança e fé do resto do mundo, dos miseráveis abandonados. Eu estava ali
para mais uma gota de alegria. E tudo o mais tremia a minha volta, o sol
exultava, meu coração estagnou numa velocidade quase imperceptível, as cores
começaram a sumir, e, então, fui tragado...
Abri os olhos
no meio de uma tarde assombreada pela barreira da cortina do meu quarto. O
ventilador palmilhando em círculos monótonos sobre minha cabeça. Das porções de
mundo além daquelas paredes e da lã grosseira do meu cobertor, vinham ruídos
que me davam a certeza de que estava muito perto de uma família em atividade.
Ao meu lado, meus olhos ainda baços divisavam, havia um pequeno despertador e
um copo d’água a acompanhá-lo. As Aventuras de Tom Sawyer, lia-se na borda do
pequeno livro caído entre minhas pernas úmidas. A normalidade, pensei. A sede
dilacerante por um pôr do sol acolá. Ou aqui? Suspirei, a cabeça apoiada no
travesseiro, e fitei o teto, mergulhado na impessoalidade alva do ambiente.
Fosse qual fosse o meu real lado, a Tangerina havia produzido efeito. A viagem
acontecera ou estava acontecendo.
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