sexta-feira, 5 de junho de 2015

O Pôr do Sonho



O céu cor de cereja não tivera em outras épocas, quando o mundo ainda padecia das epidemias de coração arrebatado, o poder de atrair olhares como agora. Era o fim da tarde, e caminhávamos lentamente um ao lado do outro rumo àquela ladeira atapetada de grama ainda verde, onde se podia ver melhor o por do sol. Vencedor, o Faulkner pesava na mão, tive de soltá-lo, minha resistência tendo falhado em toda sua teimosia. Um Bukowski seria mais gentil para o punho, contudo, não me entregaria à tentação de tão precário benefício. O Hesse já havia ficado para trás, enquanto o sol, cada vez mais adiante. E somente o García Marquez resistia na mão do amigo.
As solas de nossos sapatos já deviam ter cruzado todas as procissões possíveis, iam cada vez mais finas, e nossos pés desenvolviam uma visão própria, palmeando o solo com frequente e tamanha intimidade. Melancolicamente, compulsivamente, seguíamos, não parando nem para ceder a nossas ânsias físicas, como se só nos restasse deixá-las para trás com passos insistentes para nos tornarmos filhos completos do novo mundo.
Por toda parte, os carros abandonados seguiam a canção das ruas silenciosas e aguardavam sem ansiedade, à moda de fiéis prostrados, que as luzes mortas dos semáforos ressuscitassem e decidissem novamente o rumo de sua existência. Nossa ambição, porém, era outra, e os ignorávamos, feito ignorávamos que as janelas tinham olhos por trás das pálpebras de tecido das cortinas, e julgamentos covardes e murmurantes corriam pelos corredores. Havendo um belo sol a nos abandonar, um tão belo lago de chamas ondulantes que definharíamos de bom grado, tal qual Narciso, a admirá-lo, não morressem primeiro os nossos olhos ao seu reflexo fatal, a consciência de sua partida nos deixava cheios de sede de gotas de arrebol. Sede antiga, que os tumultos da vida perdida não nos permitiam mitigar.
Ultrapassando pedregulhos e entulhos, tínhamos as portas escancaradas de edifícios a nos sorrir como bocas preventivas de cavernas que encerravam segredos impudicos e selvagens, assomando ao crepitar crocante dos fragmentos dos prédios sucateados sob nossos passos, e enquanto seguíamos para a ladeira verde, alternávamos nossa direção, desviando dos vários sacos de lixo e de seu conteúdo que vazava como vísceras de corpos inertes. Ainda veríamos pouco antes de nossa íngreme parada, para consolidar a interação com nossa nova realidade, uma senhora que caminhava com pés pesados, trajada de camisola, a mão ia tateando vagamente o ar a sua volta, perturbadoramente, e podia-se ouvir suas frases carinhosas para o estranho invisível mesmo quando já havia desaparecido atrás de um grande furgão.
Nessa altura, percebi, as vitrinas começavam a ondular, assim como meus companheiros pareciam ir se dissolvendo. Falei com cada um deles, e suas palavras iam emolduradas, ora vinham etéreas e sumiam num galope mais veloz que nossa sanha de ver o pôr do sol. As nuvens iam qual vapor atrasado na direção do horizonte, tão apressadas estavam para ocupar seu lugar no espetáculo, enquanto sentia um estranho solavanco a me sugar pelo centro do umbigo, quase que tirando meus pés do chão. Então, em meio a tantas e repentinas sensações, cruzáramos com um miserável doido. Ele tinha a cabeça apoiada num poste até nos ver e levantar os olhos inundados, num prorromper de esperança como nem uma criança abandonada poderia expressar. Moveu-se atabalhoadamente, subjugando a presunção das pernas tortas, e nos disse um choroso “oi”. Passamos por ele sem responder. Já não éramos mais os mesmos, rígidos pela sede. Somente podíamos ouvir o seu berrar infantil em busca da nossa resposta, a ausente resposta que tanto o feria, sendo que não demorou para que ouvíssemos o nauseabundo esmigalhar contra a parede, repetidas vezes. Ainda assim continuamos. E finalmente alcançávamos nosso destino, finalmente beberíamos daquele partir do sol. Sentia-me flutuar com ele pela borda do mundo, minha gravidade nada mais que uma versão infantil da falta de esperança e fé do resto do mundo, dos miseráveis abandonados. Eu estava ali para mais uma gota de alegria. E tudo o mais tremia a minha volta, o sol exultava, meu coração estagnou numa velocidade quase imperceptível, as cores começaram a sumir, e, então, fui tragado...

Abri os olhos no meio de uma tarde assombreada pela barreira da cortina do meu quarto. O ventilador palmilhando em círculos monótonos sobre minha cabeça. Das porções de mundo além daquelas paredes e da lã grosseira do meu cobertor, vinham ruídos que me davam a certeza de que estava muito perto de uma família em atividade. Ao meu lado, meus olhos ainda baços divisavam, havia um pequeno despertador e um copo d’água a acompanhá-lo. As Aventuras de Tom Sawyer, lia-se na borda do pequeno livro caído entre minhas pernas úmidas. A normalidade, pensei. A sede dilacerante por um pôr do sol acolá. Ou aqui? Suspirei, a cabeça apoiada no travesseiro, e fitei o teto, mergulhado na impessoalidade alva do ambiente. Fosse qual fosse o meu real lado, a Tangerina havia produzido efeito. A viagem acontecera ou estava acontecendo. 

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