terça-feira, 23 de junho de 2015

Ensaio






Prestes a subir a plataforma e com o coração nas mãos, apoiou-se fortemente ao corrimão como se faltassem forças, as pernas meio tremulas. Pisou no primeiro degrau e pensou no motivo que o levava a fazer aquilo, viu então a primeira lágrima cair e molhar o concreto do próximo degrau, assistiu-a desaparecer. Subiu vagarosamente como se experimentasse a sensação da ansiedade e como aquilo fazia parte mal, parte alívio. Não queria deixar tudo ir com tanta pressa, queria que fluísse. Reviu mentalmente as cenas preferidas, como no dia em que reencontrou seu cachorro perdido, na chuva, felicidade sincera, ver a devoção que seu animal tinha para consigo, mesmo sabendo-se que tinha abandonado-o dias antes numa rodovia qualquer da cidade, experimentou o perdão inconsciente. Outras duas lágrimas rolaram pelo rosto e foram parar no cimento que tudo absorveu mais uma vez. Como chibatadas ardentes lembrava de mais cenas felizes, não para fazer-se desistir, mas para continuar. Lembrou da primeira vez em que fez amor, e da primeira sensação de orgasmo, sentido o corpo esmaecer e cair lentamente quase que flutuando num mar de flores e ficar assim, por um tempo, lembrou de um rosto conhecido e como acariciou sua pele, seu rosto, seus lábios e como tornou a beijar, lentamente. Mais uma vez sentiu o cimento frio do próximo degrau e outras lágrimas caírem de saudade. Lembrou de um dia voltar para casa a pé, depois do carro ter estragado,  começar a chover finamente, olhou para cima e viu que ainda fazia sol, deixou a água cair pelo corpo como se quisesse que a água do sol o limpasse. Lembrou da vida, da comida, dos amores e dos vícios. Então tudo pareceu-lhe constante, triste e interminavelmente tedioso, como um castigo eterno na conquista de uma suposta alegria, felicidade e promessa jamais cumprida. Não queria achar a terra prometida, ela era uma mentira, sabia agora. Finalmente chegou ao topo, viu um horizonte imerso em casas e prédios cobrindo o pôr do sol cinzento, abaixou o rosto e viu os pés nus mais uma vez, viu as mãos, andou mais uns passos na plataforma e olhou o horizonte, tão feio.
Virou de costas para tudo aquilo, andou de ré até que seus calcanhares estivessem livres do chão, apenas com as pontas dos pés firmes à plataforma, abriu os braços, olhou para cima numa esperança de talvez desistir, e por ironia sentiu um vento bater contra ele, era o sinal para ir. Era chegada a hora da partida. Acabou, fim. Abriu os braços deixando o peito aberto como se o vento contra ele o tivesse atingindo fatalmente, fechou os olhos pela ultima vez. Soltou o corpo.


Sentiu então a água tocar-lhe, prendeu a respiração e deixou-se afundar e contra sua vontade foi lançando a superfície novamente. Quando rompeu o espelho d’água, o ar entrou em seus pulmões fortemente  foi como se visse o sopro de Deus. Nadou até a borda e sentou. Disse, “para viver é preciso morrer”, levantou e foi embora sem olhar para trás. Hoje era o dia de seu aniversário.

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