domingo, 14 de junho de 2015

Remorso, Palavras... Fim!



          Crianças! Éramos somente crianças. 
       Ele se mantinha iluminado, no centro do redemoinho de trevas que era o seu quarto, pelo lume deprimente e amarelado de uma vela sebosa, cujos filetes derretidos, em descendência pelo seu corpo rugoso, assemelhavam-se às raízes de um caule em avançada decomposição. Assim preferia, mesmo que, com leve gesto, pudesse acender a prestativa lâmpada adormecida sobre sua cabeça, pois, agarrado ao ato da pequena chama, sendo o mais negrume, sentia-se refugiado dos ataques do próprio pensamento.
       Havia dias que o sono vinha lhe traindo, entregando-o quase que totalmente indefeso à horas insones, obsedantes de remorso e ansiedade. Traição que os momentos de leitura, ritmados pelo martelar convulso dos pés, ao flanar da madrugada, ou os comprimidos, já não podiam remediar. Cada cômodo, ou ação, em que procurou se esconder, surgiu-lhe como o cadafalso, no qual as imagens lhe atingiam, freneticamente, como cutelos lançados por sua memória acusadora.
       Só então, depois de muito penar, tiritando na noite, entre goles sôfregos de café, certo de que as atrações notívagas não foram feitas para si, e após dias, cuja rotina se resumiu a círculos paranoicos pela casa, ele encontrou seu bunker num reduto ameno de luz bordejado de denso breu, no qual, não inteiramente imune, pôde pensar com menos desespero. Por que isso? Éramos apenas crianças.
       E ali, iluminado pela tênue vibração da vela, foi assaltado por uma ideia de redenção, muito frágil, em verdade, deveras infante, todavia, o pouco que restara ao cativo que de tudo tentou para se livrar do ajoujo. Tomou papel e caneta e, ainda que trêmulo, como estou trêmulo, começou a traçar, bracejando em ondas de aflição, o encontro fatal com aquela mãe de cabelos negros, ondulantes, apaixonantes para os olhos da infância, que nunca soubera o destino do seu pequeno filho, à qual vira chorar muitas vezes, detrás de janelas de ângulos pensados para a privacidade, mudo - porém, não mais -, e lhe contou como naquela tarde, em um dia pálido de calor, nos dias em que o circo andava pela cidade, ele, com mais alguns amigos, enfiara seu menino num trem, puro sadismo infantil, e o viram partir com a locomotiva, desfigurado de pavor e impotência, incapaz de saltar sumindo na primeira curva para nunca mais reaparecer.
    Narrou desequilibradamente, traduzindo o delírio por meio das letras tortas. A complacência da mulher, os cabelos apaixonantes, reconhecendo o fim da sua criança, sem a violência que ele imaginara. Pareceu-lhe fácil e o perdão podia ser sentido varando a maciça escuridão para o galardoar com o alívio da confissão. Contudo, nesse instante, sua mão, como que tomada de vida própria, vacilou, arrancou subitamente e começou a rabiscar-lhe a página contra sua vontade, para o horror dos seus olhos dilatados.
        Assombrado, viu surgirem no papel maldições, lacerando com peso a superfície da folha, transformando em brasas os seus músculos. Não conseguia se interromper. Em, seguida com a mesma absurda facticidade, braços alvos, coleantes, surgiram diante de si, através da distorção produzida pelo calor da vela. Depois, uma cabeça, acompanhada de tenso tronco feminino saltando de entre as linhas. Foi o que bastou para lhe fazer cair a boca, espavorida, confrontando aquela face de mãe, antes tão enfeitiçante, ultrajada pelo ódio.
         Como que desolado, ensaiou por os lábios hirtos a gaguejar umas palavras, embora não tenha tido a oportunidade de seguir, pois as mãos etéreas dispararam e lhe abraçaram a garganta, comprimindo-lhe com uma força e vontade demoníaca de destruir. Uma paralisia a o dominar sobrenaturalmente, ele gritou, a cadeira cedendo atrás de si, e desabou sem vida. Nisso, a caneta escapou de sua mão, cruzando o lânguido círculo de claridade e emudeceu sob a treva. 
       

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