domingo, 10 de maio de 2015

Matiesse Detrás Da Sebe




      Era já tarde a ultima vez que vi os olhos castanhos de Matiesse. Estávamos debaixo do toldo anulado de um ipê, na noite, florzinhas pingando em nossos ombros. Com cumplicidade ela apertava meu ombro, aquele sorriso de saúde, riqueza, sucesso, construindo em mim a segurança que bastava para que eu não ficasse a vagar os olhos por qualquer trecho de sombra em busca de rastros de perigo. Então sua mão descia e subia, acariciando meu braço e enrugando a manga do meu paletó, e eu nervosamente reagindo, com meus joelhos a convergir um para o outro, feito uma criança em dívidas com as obrigações da natureza. Ela sorrindo para cada um desses meus gestos infantis.
Era o mais ressoante momento de beleza de nossa breve paixão, talvez pela contundente escassez do tempo que tínhamos a realçar a potência da nossa percepção. O último toque, a última vista, quiçá o último beijo depois de uma conveniente pausa, em que nossos olhares se propõem essa última pequena indecência dos apaixonados. Economizávamos palavras, pois era inútil falar. As nuvens, a lua, o céu amargurado, as flores atrás dos arbustos como senhoras pudendas que observam as intrigas por detrás da janelas, todos os elementos sabiam, entregavam e contribuíam para o dramático fim do enredo.
E eu quisera tender o pescoço para o beijo final, mas Matiesse me deteve com a ponta de um dedo impertinente, da natureza das gotas viscosas de chuva que começavam a cair e incomodar, levando-me a crer que mesmo o ambiente já propunha estímulos para nos incitar ao término do nosso drama. Assim se frearam os meus lábios, com Matiesse a pronunciar, muda, o Não. Então badalou em mim a certeza de que não podia ser, que não era mais o certo. Sentia que em alguma parte do meu mundo havia a silhueta de um médico a sussurrar. Eu o via. Sua lapela branca, a lentra em garrancho a difundir a pena capital. “Desfaça! Não é real”, dizia ele, em algum momento do tempo-espaço, com dureza. 
E, prostrando-me, sem revolta, ao conselho, afastei o corpo ainda calejado pela última tendência, minhas costas já bastante úmidas, assim como o seu cabelo, e vislumbrei os olhos castanhos de Matiesse, gaguejando, na última oportunidade que tive de apreciá-los. Em seguida, ela se virou, fazendo o vestido azul rodopiar como um borrão de aquarela, e se distanciou sem tracejar um movimento sequer de adeus. Eu fiquei sob a árvore, o mundo se apagando à minha volta. A escuridão se tornando um só comigo, ambos partes de um mundo que se optou por esquecer. 
Naquela noite, Matiesse chegou em casa e se atirou sobre a cama, agarrando o travesseiro, depositando nele as lágrimas da separação. Depois o atirou contra a parede, abalando o sossego dos seus poucos livros presos na prateleira ao lado, inconformada, desolada por suas limitações; demoraria ainda muito tempo para que entendesse e aceitasse que tinha um transtorno, que em seu desligamento das pessoas e coisas, criava formas e mundos em sua cabeça e tinha o dom de acreditar-lhes. Choraria ainda muito tempo por saber que eu era parte do seu transtorno. Mas, pela manhã, levantaria mais calma; teria sua família para confortá-la. Acabaria entendendo que era preciso por de lado as sebes que ela mesmo cultivava. Logo, teria o doutor, em sua lapela branca, a elogiá-la pelo progresso, e a devastação de sua fantasias já não lhe pareceria tão ruim.
Era a verdade. Foi a minha sina. Desde então segui esquecido numa parte distante da memória que provavelmente resguarda tudo aquilo que não mais teve espaço seja no passado, presente, ou futuro duma pessoa. Quando alguém puder ler isto nas ondas sintonizadas de uma mente sonhadora, que se saiba que esteve registrado nas páginas do diário de um esquecido amor imaginário. 

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